Em um mundo de
ideologias pós-modernas que controvertem acerca da existência de conceitos
morais como Bem e Mal, encarando a consciência humana como mera construção
social, Hubert Seipel foi além dessas discussões. Ele não só sabia que tinha
uma consciência, como resolveu vendê-la por um preço nada módico para o governo
russo.
Segundo documentos
vazados do sistema financeiro do Chipre, o jornalista alemão recebeu nada menos
que 600 mil euros para publicar um livro impulsionando as narrativas de Moscou
para o público europeu. Essa quantia, convertida em moeda nacional, seria o
equivalente a três milhões de reais. O pagamento seria para a publicação de um
livro sobre a situação política russa, obra lançada no ano de 2021 com o título
“O poder de Putin” (em alemão Putins
Macht)
Seipel ainda publicou,
em 2015, livro com a mesma temática sob o título “Putin: o poder visto de dentro “(em alemão Putin: Innenansichten
der Macht).
Além de livros, o
jornalista produz documentários para a emissora alemã NDR, por meio dos quais
transmite ao público alemão uma série de entrevistas com o governante russo. Em
2021, durante uma entrevista na rádio, Hubert foi perguntado se havia recebido
algum pagamento para fazer cobertura favorável ao governo russo, ele negou de
forma enfática e com pose de indignação.
O propagandista teria
recebido esses valores de uma offshore mantida por Alexey Mordashov, oligarca
pertencente à órbita do poder de Moscou, tendo sido testemunha contratual o
advogado Dmitry Fedotov, que trabalha para Mordashov.
As notícias que
circulam sobre o método de propaganda nas redes sociais já denunciavam a
existência de uma rede pulverizada de perfis dedicados a repetir os mesmos
tópicos da agenda de Moscou, sendo que recentemente houve até mesmo confissão
da existência de fábricas de trolls, cuja função seria a massificação de
postagens voltadas a influenciar a opinião pública doméstica e estrangeira. Na
ocasião, Yevgeny Prigozhin, que posteriormente viria a se tornar inconveniente
ao Kremlin, talvez por ter o hábito de falar em demasia, confessou que não só
mantinha uma fábrica de trolls, enganando os inimigos ocidentais, como
continuaria a enganá-los no futuro.
Não obstante, o caso de
Seipel é de uma figura pública, aparentemente imparcial, que se apresenta na
condição de especialista para o público geral. Ele teria acesso fácil ao
presidente russo para entrevistas, contando com o diferencial de “ser um dos poucos que conhecem Vladimir
Putin tão bem”, podendo se gabar de tê-lo encontrado mais de 100 vezes.
O propagandista tenta
se defender, apesar de confessar ter mesmo recebido valores, não confirma o
montante recebido, acrescentando ainda que faz exigências aos contratantes que
garantem a sua independência e imparcialidade para elaborar os escritos. Perguntado
se as pessoas que integram a sua equipe de reportagem não questionaram esse
vínculo, o propagandista respondeu que ninguém nunca havia perguntado nada
sobre relação alguma.
Contra as acusações de
propagandista, ele rejeitou a ideia de ser um agente de influência do Kremlin,
já que não teria sido pago por nenhum órgão oficial do governo russo: “O dinheiro não veio de nenhum órgão de
segurança ou de estado”, disse o propagandista.
Durante o período de
transição da União Soviética para a Federação Russa, houve um programa
controlado de privatizações pelo qual o poder central logrou formar vários de
seus megaempresários. Por uma via indireta, aparentemente desvinculada do
governo, essas fortunas capitalistas poderiam celebrar contratos mundo afora
atendendo aos interesses da nomenklatura
neocomunista e seus ditames. O pacto entre a FSB (KGB) e os novos ricos era a bipartição
entre poder político e poder financeiro: os herdeiros do marxismo-leninismo continuariam
responsáveis pelas decisões políticas e os oligarcas poderiam receber a fatia
do bolo das estatais e do capitalismo permitido pelo governo, atuando dentro
dos limites dessa cerca enquanto se mantivessem leais ao governo, sob a pena de
serem expropriados, presos por “fraudes tributárias” ou caírem de alguma janela
de hotel.
Além de conseguir
manipular o empresariado biônico, a inteligência russa pode fazer o mesmo na
rede de máfias que se espalha para além de suas fronteiras, que encontrou nos
fins dos anos 80 e 90 um ambiente caótico conveniente para se desenvolver e
operar.
Por esse modo de agir,
o contrato pode ser celebrado com jornalistas europeus e americanos, que se
isentam de quaisquer intenções perniciosas à soberania de seus países, alegando
estarem apenas apresentando um ponto de vista protegido pela liberdade de
imprensa, negada nos domínios do entrevistado, como é exatamente o caso de
Hubert Seipel.
Anatoliy Golitsyn já
apontou que um dos objetivos estratégicos da União Soviética era afastar a
Europa da posição de aliada dos Estados Unidos, tornando esse bloco de países
em um conjunto neutro ou francamente hostil à influência norte-americana, o que
parece ser a linha dos movimentos ditos conservadores e direitistas europeus,
mesmo os de fora da Alemanha, que macaqueiam o discurso racial do terceiro
reich como se tivessem base para isso e nutrem simpatias para com o
neobolchevismo e eursasianismo, ideologias a fim de maquiar o regime neocomunista
de Moscou e torná-lo mais palatável.
Já em 1984, Golitsyn
elencava entre os objetivos do eurocomunismo a “penetração no Ocidente de técnicas de desinformação, já testadas em sua
eficácia, para sugerir a evolução dos partidos eurocomunistas em partidos
nacionais independentes e liberalizados” a fim de “preparar o terreno para uma eventual liberalização na União Soviética e
na Europa Oriental e para a promoção massiva da dissolução da OTAN, do Pacto de
Varsóvia e da presença militar americana numa Europa neutra e socialista”
(p. 337/338)
O mundialismo da ONU
aglutina as nações com base na lábia, suborno e ideologia, mas a tradição
comunista, que é muito mais velha, pode fazer o mesmo e não há razão para
descartar uma abordagem pacífica, trazendo para o seu lado os países europeus
também com base na lábia, suborno e ideologia. A Alemanha é uma das peças
principais para se atingir o objetivo de vitória dos comunistas, assim era
antes mesmo de a OTAN vir a existir, quando Karl Marx prognosticava o triunfo
da revolução, ou ainda, anos depois, quando Aleksandr Dugin lamentava que o
nacional-socialismo não tenha se aliado à União Soviética numa frente única
antiocidental.
O discurso produzido
pelo propagandista Hubert vem a calhar nessa tentativa de aproximar as
correntes europeias ao regime de Moscou, e esse escritor é apenas um dos
agentes de influência desmascarados, pois muitos outros continuam repercutindo
uma imagem de possível harmonia entre os sentimentos nacionais e uma tradição
inveteradamente comunista.
Em seu livro de 2021,
Seipel inicia descrevendo o movimento de caça às bruxas que ocorreu em Salem,
nos Estados Unidos, extraindo desse quadro um ambiente de fanatismo, para então
fazer uma analogia com as denúncias feitas pelo Senador norte-americano Joe
McCarthey, o qual atuaria numa atitude anticomunista histérica que só poderia
ser explicada com base em fatores psicológicos da mentalidade perturbada do
Senador.
Um traço fundamental
entre os pseudonacionalistas, os que manifestam apoio ao regime russo e chinês,
é justamente esse: eles agem com base na ideia de desaparecimento da ameaça
vermelha, precisam impor a concepção do comunismo como uma ideia morta,
que não encontra agentes reais e ativos no século XXI. Por essa linha, Rússia e
China não se enquadrariam como regimes comunistas, o pseudonacionalista tenta
descaracterizar o sistema político chinês como qualquer outra coisa, alegando
que reformas econômicas teriam transformado a China “em alguma outra coisa”, como se a tradição marxista não fosse
flexível o suficiente para trocar de pele como as cobras fazem.
Somente com base nessa
imposição, a de considerar o anticomunismo uma posição antiquada e vazia,
típica do fanatismo protestante contra as bruxas de Salem, é então possível
trabalhar a imagem da Rússia sem a mácula dos gulags, sem um sistema
totalitário assassino que conta com cerca de 100 milhões de mortes, sem
tendência internacionalista, sem financiamento a terrorismos e fomento a
cartéis de drogas, em suma, o regime criminoso é simplesmente deixado de fora
da equação ou considerado tão criminoso quanto os regimes ocidentais
supostamente seriam. O propagandista não protege só o neocomunismo russo, ele
também tenta retirar a seriedade das críticas feitas por Donald Trump com
relação à China, classificando a sua convicção de que o coronavírus é um vírus
chinês como sendo uma atitude quase religiosa (ou seja, estritamente fanática).
Certamente não devemos esperar que Seipel
tenha desapontado o cliente que pagou pela elaboração da peça de propaganda. No
documentário, Vladimir Putin aparece caçando veado-vermelho na Sibéria,
dirigindo por Moscou em sua limusine ao lado de Seipel, em outra cena tendo a
orelha lambida pelo seu cachorro, além de aparecer jogando hóquei. Segundo o
The Guardian, o documentário foi visto por 1,85 milhões de pessoas quando
primeiramente foi veiculado em 2012 e repetido cerca de 51 vezes na rede alemã
NDR.
GOLITSYN, Anatoliy Meias verdades, Velhas mentiras
– A estratégia comunista de embuste e desinformação. Tradução Nelson
Dias Corrêa. Vide Editorial. Campinas, SP. 2018.
SEIPEL, Hubert. Putins
Macht- Hoffmann und Campe Verlag, Hamburg (2021)
Top German journalist
received €600,000 from Putin ally, leak reveals. https://www.theguardian.com/world/2023/nov/14/german-journalist-putin-hubert-seipel
Ich, Putin - Doku von
Hubert Seipel (2012) - eine Arbeit des Lobby – Journalisten. https://youtu.be/NsriJYPf3Rs?si=M8ZrLHmwly9-Op1I
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