PARTE
II - O pseudoateísmo e a transição para uma postura simpática ao gnosticismo
O que aconteceria se,
quando você morrer, se deparasse com Deus após uma longa vida de negação? Essa
foi uma das perguntas feitas a Richard Dawkins[1],
que respondeu que iria perguntar que tipo de deus Ele seria, se Zeus, Thor,
Baal ou Yahweh, e por que se esforça tanto para se esconder dos homens.
Se todos os ateus
enfileirassem os deuses dessa forma, com o mesmo grau de equivalência, talvez o
problema fosse menos grave, porque a oposição às divindades seria integral. Os
maiores problemas dentro da Igreja não vêm de ateus ou agnósticos, mas de
correntes heréticas, que desconfiguram o dogma, pervertendo o sentido das
palavras, a mensagem e estruturas eclesiásticas, fartamente expandidas ao longo
de séculos.
A perspectiva negadora
de Dawkins foge da rota proposta pela tendência cética de Nietzsche, porque se
o primeiro está disposto à negação geral, este último não; a postura dele é
diferente a depender da crença objeto de análise. Ao reclamar do monge alemão,
Martinho Lutero, Nietzsche o acusa de ter refreado o renascimento[2].
Se entendermos a racionalidade como negação de divindades, consideradas
ilusórias, o referido escritor nos joga um balde de água fria, porque ele não
está denunciando que uma irracionalidade cristã teria prejudicado uma
racionalidade renascentista emergente. O real problema para ele é, na verdade,
que a irracionalidade cristã teria mantido a hegemonia sobre a irracionalidade
pagã, que era a marca do movimento renascentista e com a qual ele se encontrava
em sintonia, subscrevendo como desejável para a civilização europeia.
O que revela que, para
Nietzsche, o problema não estava na crença em algo, mas no cristianismo em
particular. Tratando-se de um paganófilo[3],
estava pouco preocupado em zombar dos pequenos deuses do raio, do mar, da caça,
do amor, etc..., visando antes, nesse conjunto de crendices, um resgate dos
antigos ideais gregos e do fascínio gerado pela estrutura político-jurídica do
império romano.
O sentido das
imprecações nietzschianas pode ser resumido assim: “vejam bem, quando a
humanidade então conseguia resgatar essas ilusões do passado, veio esse monge
alemão e incendiou a Europa com um debate teológico do cristianismo”, fez-se a
revolução protestante e a Igreja Católica reagiu, promovendo uma contrarreforma
(uma contrarrevolução). O resultado foi o refreamento do ímpeto humanista
paganófilo, premido entre essas duas correntes.
Recordemos que, para
esse escritor, a moral cristã é como uma mordaça confeccionada por homens
fracos para limitar os fortes, que ficam privados das possibilidades que a
própria natureza lhes confere, daí a simpatia com relação a cultos que extraem
a sua razão de ser dos próprios elementos terrenos. Assim, o triunfo do
paganismo seria um triunfo da força contra uma moral protetiva dos fracos.
Em “O nascimento da tragédia”, a oscilação
entre o apolínio e o dionisíaco deságua na celebração da cultura grega, como
meio termo entre os romanos e o misticismo oriental, apontando aquela forma
artística e cosmovisão como superior à cultura europeia pós-cristã. Embora a
sentença da morte de Deus seja apregoada como pedra fundamental para o ateísmo
moderno, nota-se que essa afirmação icônica pretendia antes indicar o esgotamento
da civilização cristã, acompanhada de uma avaliação de que, no lugar de Deus,
voltássemos aos deuses, àquele ponto no qual, na avaliação do poeta alemão, a
arte atingiu seu ponto mais alto.
Ou seja, se um Deus só
incomoda o ateu em crise, ao quebrá-lo ele se verá diante de uma pluralidade de
deuses menores, fato que não nos leva a lugar algum se a nossa pretensão for
instaurar um reino da racionalidade que enxerga nas divindades obstáculo para
ler o mundo.
É de uma
irracionalidade tal que me sinto obrigado a repetir o diagnóstico de Miguel de
Unamumo acerca da concepção nietzschiana, do flerte em torno de um supra-homem,
que se pretende forte, mas que na hora H demonstra ser o inverso, e é
justamente nessa linha que Unamumo afirma que:
“Desesperado e louco por ter que
se defender de si mesmo, ele amaldiçoava aquele a quem mais amava. Como não
podia ser Cristo, blasfemava contra Cristo. Inflado de si mesmo, queria ser
infinito e sonhava com o Eterno Retorno, uma falsificação miserável da imortalidade,
e, cheio de piedade por si mesmo, detestava toda piedade... Sua doutrina é a
dos fracos que aspiram a ser fortes, mas certamente não a dos fortes que o são
de fato!”[4]
Na clássica foto dele
com Lou Salomé e Paul Rée, Nietzsche se encontra na posição do burro que puxa a
carroça e a mulher, cujo tratamento o chicote é indispensável, ela própria
segura em suas mãos o chicote. Cultuando a superioridade e a predominância da
força sobre os fracos, Nietzsche sofre uma crise mental ao ver um cavalo sendo
chicoteado na rua. Ao invés de enxergar no episódio a natural predominância do
poder humano sobre a natureza, o abalo o leva a rogar que o mau tratamento dado
ao animal cessasse, abraçando-o de maneira afetuosa, oferecendo-lhe a compaixão
da qual zombava quando a via direcionada aos homens. Ele me lembra a minha tia,
que parou de comer galinha depois que viu uma sendo morta. É um mundo
traumatizante, que já deve ter conduzido muitos idealizadores do übermensch ao
vegetarianismo.
Analisando o ponto de
maneira conjunta a Péguy, Lubac complementa, no sentido de que:
Forte para destruir, o laicismo
que ele denunciava não tinha força para construir. Ele escavou o canal para um
novo paganismo cujas ondas agora nos invadem e que é muito diferente do
paganismo que Péguy honrou: não um símbolo da luz cristã que viria, mas um
paganismo anticristão, que começa proclamando a “morte de Deus”, com Nietzsche
como seu profeta[5].
Lubac estabelece a
existência de um mito pagão e um mistério cristão, aludindo que cada qual exala
uma mística, espécie de válvula de escape das “coisas claras” da realidade[6].
O pseudo-ateísmo,
anticristão em essência, visa tão somente contrapor o ideal pagão ao ideal
cristão, mesmo porque, analisando a virada de chave promovida pelos cristãos em
sua época, aquilo foi de fato uma transvaloração de valores, fenômeno cuja
repetição se ambiciona, porém para neutralizar a própria cultura cristã.
Em sua obra “O sonho pagão da Renascença”, Joscelyn
Godwin sustenta que o resgate dos símbolos antigos foi feita a partir de uma
perspectiva desespiritualizada:
Segundo alguns, o Renascimento
representou um renascimento da antiga civilização clássica que teria sido
redescoberta e reafirmada contra o mundo sombrio do cristianismo medieval. Isso
é um grave equívoco. O Renascimento ou tomou emprestadas formas decadentes do
mundo antigo em vez das formas originárias, permeadas por elementos sagrados e
suprapessoais, ou, negligenciando totalmente tais elementos, empregou o legado
antigo de uma maneira radicalmente nova. Durante o Renascimento, o “paganismo”
contribuiu essencialmente para o desenvolvimento da simples afirmação do homem
e para fomentar a exaltação do indivíduo, que se embriagou com os produtos de
uma arte, erudição e especulação destituídos de qualquer elemento transcendente
e metafísico[7].
Embora o pensamento
religioso possa ter consequências seculares, a crítica humanista também pode
impregnar-se de leitura e simbolismo sobrenaturais, não apenas no caso da
arquitetura europeia envolta em elementos pagãos, como também na evocação de
conceitos em nomes de planetas, missões de exploração espacial, dias da semana
e movimentos culturais políticos entremeados de referências satânicas e
ocultistas.
Faz parte da
inteligência humana a capacidade de interpretar símbolos, por isso mesmo, tanto
na tradição cristã quanto nas demais, é possível notar essas referências.
O século da razão e seu
antecedente renascentista foram marcados por uma bizarra contradição: as cortes
começaram a se cercar de astrólogos, charlatães e místicos. Com a queda de
braço entre a Igreja e as monarquias pelo controle das universidades, a Igreja
sagrou-se vitoriosa e os monarcas começaram a reunir, em suas respectivas
cortes, intelectuais e cortesãos, desvinculados da tradição filosófica
escolástica. Muitos deles darão suporte à pretensão absolutista, que viciará a
instituição monárquica, transformando a classe aristocrática numa classe
inútil.
Nesse contexto,
tendemos a conferir crédito às palavras que um guia direcionou para Peter
Lamborn Wilson, quando este realizava a sua peregrinação em locais de mistérios
esotéricos, sendo-lhe compartilhada a teoria de que a iconografia livre de
elementos cristãos seria a evidência de “uma
sociedade secreta de hermetistas e neopagãos que não estavam apenas apaixonados
pela Antiguidade, mas também em revolta contra o cristianismo”. Wilson admitiu
que, ao menos em um nível poético, estava disposto a acreditar nessa hipótese”[8].
Alguns não precisarão
disfarçar o anticristianismo com deuses alheios à Igreja, poderão pegar figuras
próprias da Bíblia. Por exemplo, a imagem de Lúcifer tem fascinado algumas
personalidades de peso na história humana e encontram-se entre seus
admiradores: Karl Marx, René Guénon, Saul Alinsky, Aleister Crowley, Aleksandr
Dugin, mas, para além de gurus e intelectuais centrais, estende-se uma multidão
de casos individuais que repete esse mesmo padrão de rejeição ao sagrado e
adoração do profano. A figura do anjo caído influenciou movimentos inteiros, o
socialismo, o feminismo, os esoterismos (em suas várias vertentes), o eurasianismo.
Vozes defendem que a própria maçonaria está implicada nesse culto
luciferiano...
As doutrinas
luciferianas acenam com a possibilidade de conhecer o oculto e a palavra
“libertação” é frequente nos movimentos impulsionados por esse tipo de crença. Per Faxneld faz uma divisão dos satanismos em
duas correntes: 1) Satanismo meramente
cultural: a simpatia pelas evocações satânicas, embora não se acredite na
existência do sobrenatural; 2) Satanismo
esotérico e crente: culto efetivo dos anjos caídos.
Com efeito, se é
possível louvar Lúcifer por razões simbólicas, a mesma coisa se poderia dizer
com relação a Cristo e sua Igreja. Não obstante, os ateus pseudo-racionais dão
uma de joão-sem-braço e constroem justificativas esquizofrênicas para se
debruçarem diante do simbolismo satânico, enquanto rejeitam o simbolismo
cristão, alegando tratar este último de coisas inexistentes, como se a mesma
coisa não pudesse ser dita por eles com relação àqueles outros, como se satanás
não pudesse ser desprezado como mera obra da imaginação perversa, e haveria
razões de sobra para desprezá-lo, acentuando seus aspectos repulsivos,
diferente do que ocorre com a cosmovisão cristocêntrica.
Tomando por base poemas
e escritos de juventude, é atribuída a Karl Marx uma devoção ao diabo, o que
denota que, por trás da condenação da religião como ópio do povo, havia um lado
espiritual oculto e subjacente à carapaça materialista do sistema ideológico
marxista. Algo similar ocorreu com a mecânica de Isaac Newton, que, tida como
produto racional de uma época que prometia romper com a superstição, não era
senão parte integrante de uma teologia construída por aquele pensador.
O biógrafo de Marx,
Franz Mehring[9],
foi o que primeiro descobriu esses elementos demonólatras de seu biografado, chegando
ao ponto de recomendar à filha mais nova de Marx, Eleanor, que ocultasse do
público essas informações.
Em introdução à obra de
Paul Kengor, Mohler escreve que “mesmo
enquanto [Marx] buscava de todas as formas possíveis eliminar Deus, e até mesmo
a religião organizada, ele tinha enorme simpatia pelo Diabo e, claramente, em
certo sentido, acreditava no Diabo… ele acreditava claramente na personificação
do mal.”[10]
Quanto aos trechos
poéticos, destacam-se os dois seguintes:
“Assim,
o Céu eu perdi, bem o sei.
Minha
alma, outrora fiel a Deus,
Está
escolhida para o Inferno.”
— A Donzela Pálida, 1837
“Olha
agora, minha espada enegrecida de sangue há de golpear
Infalivelmente
dentro da tua alma…
Os
vapores infernais sobem e enchem o cérebro,
Até
que eu enlouqueça e meu coração se transforme por completo.
Vê
a espada — o Príncipe das Trevas a vendeu para mim.
Pois
ele marca o compasso e dá os sinais.
Cada
vez mais ousado, danço a dança da morte.”
— O Jogador, 1841
São temas recorrentes a
morte, a destruição, o suicídio pactual e estados de espírito típicos do
personagem de Fausto, Mefistófeles, quando este diz que “tudo que existe merece perecer”. Kengor afirma que essa sentença
era uma das preferidas de Marx.
O pai de Karl o
exortava a aproximar-se da religião, encarando com estranheza o fato de que o
filho parecia andar perturbado. Numa carta de 2 de março de 1837, ele escreveu:
“Esse teu coração, filho, o que o aflige?
Ele é governado por um demônio? É governado por um espírito? E esse espírito é
celeste ou é faustiano?”. Molher ressalta o caráter misantropo, que
paradoxalmente acompanha um discurso utópico que se atribui a função de
maximizar a felicidade humana. Como muitos misantropos, Marx tinha lições e
dicas para dar aos outros, como se conselhos dados por misantropos resultassem
num bem para os seres humanos, algo que não faz o menor sentido, já que o
conselheiro pouco se importa na felicidade e prosperidade do aconselhado.
Na letra da
internacional[11],
feita por Eugénie Potier e cuja composição musical atual se deu em 1888, por
obra do anarquista Pierre Degeyter, lemos que:
Messias,
Deus, chefes supremos,
Nada
esperamos de nenhum!
Sejamos
nós que conquistemos
A
terra mãe livre e comum!
Para
não ter protestos vãos,
Para
sair deste antro estreito,
Façamos
nós por nossas mãos,
Tudo
que a nós nos diz respeito
“O comunismo começa onde o ateísmo começa”, esta é uma frase de
Marx, citada por Kengor.
Mohler complementa: “O ateísmo não era um fator acessório no
pensamento marxista. O ateísmo é o a
priori — porque, se existe qualquer Deus ontológico, então não é
possível sustentar a cosmovisão marxista.”[12].
Por tal razão, Kengor avança e conclui que muito mais do que a abolição da
propriedade, do capital ou da família, a programação marxista implica na
abolição da própria religião e, diante de todas as simpatias ocultas que ele
nutre, ele realiza um traçado para outro tipo de culto, profano, falso,
pervertido e degradante, longe das expectativas nutridas pelos racionalistas
enganados, que sonham com uma suposta aurora científica materialista.
Sendo produto direto da
tradição revolucionária socialista, que precede o marxismo, é de se esperar que
os ateus e agnósticos com tendências políticas se filiem a esses esquemas, sob
a justificativa de que o materialismo histórico encontra-se livre da metafísica
religiosa, impressão que se mostrará falsa, pois a superstição sempre estará na
espreita.
Após décadas de regime
comunista, os russos ainda se mostravam estupidamente supersticiosos e uma onda
de bruxaria e paganismo encontrava-se subjacente ao ateísmo soviético oficial,
recebendo a denominação de “ocultura soviética” (do inglês soviet occulture), cultivada pelo círculo Yuzhinsky, que produzirá
toda a sequelagem que fundamenta o neo-eurasianismo[13].
Alexander Sumbatov era
um dos nomes conectados a esse círculo, atribuindo-se o pseudônimo de Yuzhin.
Segundo Cristian Derosa, tratava-se de maçom iniciado na loja “Renascença”, do
Grande Oriente da França, situada em Moscou[14]. Com essas conexões, Yuzhin foi alçado para
relações proveitosas com a nomenklatura soviética, aproximando-se de Anataly
Lunacharsky, praticante de teosofia e ocultista visando o recrutamento de
esotéricos para transformá-los em colaboradores do Estado.
Derosa escreve que:
O lado ocultista e místico de
Yuzhin contrasta com a sua postura pública. Em sua biografia oficial, Yuzhin
era um homem realista, amante do progresso e inimigo do misticismo. Mas por
trás das cortinas do teatro comunista, ele defendia um teatro-ritual por meio
da adoção de esoterismos. Na verdade ele foi um dos mais importantes canais de
transmissão de fontes e conteúdo esotérico entre a União Soviética e a França,
já que vivia entre os dois países. Essa integração de ocultismos foi, segundo
Arnold, decisiva para o desenvolvimento de todos os que participaram do círculo
nas décadas seguintes, o que podemos incluir aí a obra de René Guénon apenas
para citar a fonte mais óbvia[15].
O símbolo da foice encontra
correspondência na mitologia eslava, sendo um instrumento usado por Marzanna,
deusa da morte, do frio e das colheitas, para decapitar o seu marido após a
descoberta de uma traição[16].
Quando um ateu ou
agnóstico se vê na situação de adotar alguma posição ideológica, ele o faz
alinhando-se a esses blocos. Esses movimentos e linhas de pensamento exercem um
poder atrativo ou domesticante dos ateus que, em tese, sentem repulsa por
construções espirituais. Porém nesse mesmo campo encontraremos uma miríade de
crenças diversas, que vão desde o ocultismo, satanismo, até religiões
orientais, modalidades livres espirituais sem traços cristãos. Uma
característica do campo socialista é aglomerar toda a sorte de espectros
religiosos e direcioná-los conforme o projeto político-ideológico. A questão do
eurasianismo é icônica para demonstrar essa capacidade de o os socialistas
serem um saco de gatos em questões espirituais, muito em razão do perenialismo
que reafirmam. Mais uma vez, os antiteístas não são antirreligiosos, são só
anticristãos, eles se voltam contra a Igreja Católica e seu Deus único (ou como
denominam, “Deus bíblico”), mas toleram ou abraçam a pluralidade, o ecletismo
de ocasião, feito de caso pensado para minar as bases do campo ocidental
cristão.
De fato, o teor
esotérico dessa sopa de socialismos é tão forte que não é absurdo considerar
que assassinatos cometidos em massa produzam, na cabeça de integrantes desses
movimentos, uma energia mórfica considerável, à maneira de sacrifícios rituais
em série[17].
Nesse sentido, a obsessão pelo ato de matar consistiria em algo mais, para além
da simples eliminação de opositores. O sentido da palavra holocausto, por
exemplo, no caso do socialismo alemão, remete a um “sacrifício pelas chamas”.
Nunca fui da tribo do
heavy metal, mas não é preciso ser um observador muito atento pare perceber
como a identificação simbólica nesses meios segue o mesmo padrão de cultivar o
macabro, aquilo que se aproxime de uma revolta metafísica satânica. Então notem
que ao mesmo tempo em que concentra um público indiferente à religião
(particularmente à tradicional, a cristã) é um meio musical que aglomera muitos
ateus que tomam para si símbolos satânicos, como uma espécie de contracultura.
No entanto, iniciando
como cringice contracultural, esses símbolos transformam-se em hábitos e então
a fase muito ateia é sucedida por outra mística e recheada de palhaçada
satânica ou pagã (quando não esses dois, conjuntamente), com revisionismos do
cristianismo, símbolos do oculto e invocações de entidades as mais diversas –
as chaves de Salomão, Goetia, Ouija e etc... Trata-se de gente que, embora
alegue afastamento das crenças, passa cada vez mais a testar os limites, cada
vez mais se satanizam e se paganizam.
A verdade é que muitos
ateus são falsos ateus. No fundo, compartilham de ideias satanistas ou de
crenças esotéricas e, cultivando esses vetores, seguem a sua linha
pseudo-racionalista, apegando-se ao disfarce científico como simples ardil
retórico, até que finalmente o abandonam por completo e passam para a fase
definitiva da transformação em gnósticos. Portanto, o ateísmo é uma espécie de
elemento integrante de uma fase alquímica de modificação de crenças, em que
primeiro se dissolve a crença e reverência à tradição tida como hegemônica (a
da cruz), para depois consolidar novas formas de espiritualidade, filosofia ou
cosmovisão contrárias à primeira.
Agora, um breve
episódio pessoal e ilustrativo. Como é costumeiro em qualquer fase
universitária, estava eu com um amigo bebendo numa determinada praça, que
ficava próxima a um daqueles estabelecimentos que vendem bebidas 24 horas.
Então surgiu um rapaz vestido de preto, no estilo heavy metal. Passei a trocar
algumas ideias com ele, então ele me revelou que era ateu, porém em suas mãos
ele segurava um livro e, ao ser perguntado sobre o que era, me mostrou,
explicando tratar-se de satanismo. Além disso, ele também tinha algumas
tatuagens relacionadas ao tema, o que demonstrava ser exatamente um desses
casos nos quais, o desprezo a entidades inexistentes (e a seus cultos) se
coaduna com uma espécie de adoração ou simpatia estranha ao que se esperaria de
uma mentalidade laica.
Assim é porque, em
última análise, todo ateu tende ao gnosticismo.
O problema, portanto,
não reside no fato de acreditar em histórias falsas e absurdas, porque, em
tese, os dois lados estariam nessa condição, tanto os que acreditam no cordeiro
quanto os que acreditam no bode estariam professando irracionalidades e
invencionices. A diferença é que o ateu, com o seu fetiche satânico, não
rejeita o simbolismo luciferiano como algo ridículo da mesma forma como faz com
a cruz e a Bíblia. Isso evidencia que o verdadeiro núcleo da questão não é a
crença irracional em si, mas vislumbrar a melhor forma de efetivar uma oposição
sistemática e de fundo emocional a uma religião específica, que no caso é o
cristianismo, poupando as demais.
Os seculares são
soldadinhos que compõem as hostes dos esotéricos e gnósticos de todo o tipo,
eles são jogados numa disputa que envolve crença versus crença (ou para ser
mais exato, de várias crenças contra uma em particular, aquela que consideram a
hegemônica e obstáculo). Porém, imersos nesse tipo de embate, tentam opor a
razão à fé, buscam dar ares de cientificismo a uma batalha eminentemente
espiritual ou, para usar um termo melhor, extra-política e cultural.
Sem dúvida, para além
da questão metafísica, o cristianismo é um obstáculo político. Quando a
denúncia marxista, segundo a qual a religião é o ópio do povo, é lançada contra
a Igreja, ela se fundamenta no fato de que, impregnado de valores cristãos, o
proletário não supera esse esquema metafísico e fica impedido de ingressar na
luta de classes. A religião é uma camada impeditiva para a luta revolucionária.
E vale asseverar que os seculares são contra essa camada e a favor da revolução.
As exceções apenas confirmam a regra.
Se fôssemos analisar a
questão religiosa a partir de um prisma secular verdadeiramente racional, poderíamos
enveredar por outro raciocínio, colocando-a sob perspectiva sociológica,
observando que mesmo as crenças falsas determinam comportamentos reais, com
consequências práticas. Se o sujeito acredita em mandados divinos no sentido de
praticar o bem, ser justo e evitar a tentação, então fica estabelecida a regra
segundo a qual ele tenderá a agir bem ou se sentir culpado quando não o fizer. Por
outro lado, se considerar a posição do bode mais atraente, irá se alinhar à
postura desafiadora do bem e dos pactos sociais, defendendo as transgressões e
relativismos, ou seja, irá olhar para esses valores negativos com simpatia ou,
no mínimo, indiferença.
O ser humano é
influenciado desde a infância a partir de modelos ideais. Uma criança que se
desenvolve numa sociedade violenta se acostuma com a brutalidade e tende a
considerar o meio cruel como o mais legítimo para atingir seus objetivos e
satisfazer suas vontades, assim ocorre também nos signos da cultura: quem olha
para Cristo, emulará as qualidades de Cristo, e quem olha para o bode irá
admirar os traços dele.
Outro ponto a se
considerar: se demônios existem, eles estão submetidos à vontade divina, o que
faz com que a posição de Deus prevaleça e seja correta em face das entidades
demoníacas. Se nenhum desses elementos existe (nem Deus, nem demônios, nem
anjos) então tudo deve ser considerado apenas no plano simbólico, e mesmo aí
deverão os símbolos divinos prevalecer, porque representam aquilo que Deus
seria se existisse, uma entidade suprema e absoluta que teria soberania sobre
tudo e todos, inclusive sobre os demônios. Os sinais representativos de Deus
prevalecem sobre aqueles das entidades adversárias à criação (de ordem
luciferiana). Se Deus existir, obviamente ele vence. Se Deus não existir, o
simbolismo de Deus vence. O trabalho inteligente e racional do ateu na análise
dos símbolos religiosos tem como conclusão inequívoca a opção pelos primeiros e
rejeição dos segundos. Em nenhum cenário prevalece a palhaçada satânica como alternativa
lúcida.
O conhecimento de Deus pode
ser tratado de maneira diferenciada do conhecimento das realidades morais,
porque posso encarar a moralidade (que é absoluta) como um valor em si mesmo,
jogando para frente as implicações dessa constatação, ou seja, se poderia ou
não ter relação com uma entidade antecedente que tenha definido esses vetores
morais.
Na concepção teológica,
os demônios são como que testadores do merecimento humano em ingressar ao
paraíso, Lúcifer é um revoltado, inconformado com o fato de que algo carnal e
mortal tenha sido criado com atenção e amor divino, Satanás não é inimigo de
Deus, mas inimigo da humanidade.
A crença em demônios
pressupõe a existência de Deus. Porém, se Deus existe, é Ele que deve ser
louvado e adorado, não suas criaturas baixas e mentirosas. O satanismo
autêntico é uma construção que se implode, é uma tese suicida, porque
as premissas contrariam o próprio edifício, são rechaçados tanto no Gênesis
quanto no livro de Apocalipse. Com relação ao satanismo cultural, não
havendo que se falar em crença em demônios, anjos ou Deus, ainda assim extrai-se
a conclusão de que as representações de satanás não devem ser respeitadas,
porque são movidas com intuitos negativos, elas refletem o que há de pior na
consciência coletiva e individual, os processos revolucionários demonstram
muito bem isso. Ainda que não se considere os anjos caídos como existentes, os
satanistas se comportarão como se ele de fato existisse, produzindo resultados
práticos que consideram agradáveis ao demônio, portanto quando não constitui um
perigo de raízes teológicas passa a ser um problema de raízes culturais, com
efeitos degradantes e subversivos do bom senso.
A inversão demoníaca
pode ser percebida no conjunto de ações promovidas pelos movimentos ideológicos
de massa, assim como no processo de subversão cultural atribuído ao gramscismo,
ao Instituto de Pesquisas Sociais (IPS) – Escola de Frankfurt, cuja
pseudociência cultivada em universidades formou uma teia capaz de determinar
ações governamentais e gerar efeito imitativo no terceiro mundo. Essa
iniciativa contracultural configurou o pontapé inicial para a destruição
presenciada nos tempos contemporâneos e esse mesmo movimento fez da Igreja
Católica alvo prioritário. Isso é o mesmo que dizer que, para defender a
racionalidade e rejeitar os pós-modernismos, é necessário defender a Igreja
Católica.
“As
universidades, assim como as catedrais e os parlamentos, são um produto da
Idade Média.”[18] Com
a secularização dessas instituições, a ideia era justamente expelir elementos
do credo, considerados impeditivos ao conhecimento científico. Atualmente, as
universidades e institutos de educação em geral, mesmo os confessionais, sequer
ousam reafirmar os seus respectivos dogmas como linha mestra de atuação, cuja
violação poderia embasar sanções aos docentes e discentes. Por exemplo, uma
Pontifícia Universidade Católica pode abrigar projetos anticatólicos. Ou seja,
estão livres para produzir o conhecimento mais “puro” de elementos espirituais,
mas foi nesse contexto que caíram no domínio da irracionalidade frankfurtiana e
converteram-se em centros de militância ideológica.
Há muito que o embate
deixou de ser entre a razão laica e a moral religiosa, porque a tensão que
ocorre nos dias atuais, nos círculos falantes, é entre o intelecto
lógico-analítico e a moral ideológica, entre a razão autêntica e outra
fabricada para propósitos outros que não a produção de conhecimento.
As posições anticristãs
são, em última análise, irracionais ou espirituais elas próprias. Assim como
Prometeu teria fornecido o fogo da inteligência à humanidade, os satanistas
elaboram uma justificação pela qual Lúcifer seria o representativo da
libertação da humanidade, o primeiro revolucionário (elogiado por Saul Alinsky
em seu Regras para radicais). Por essa leitura invertida, desde o primeiro
momento da criação ele teria procedido a essa tentativa de fornecer ao homem o
conhecimento oculto e o ato de corrupção, de introdução do pecado original, é
apresentado como salvação por uma via oblíqua à determinada por Deus.
A investida feita pelos
seculares tende mais à reconfiguração do campo simbólico. A maior parte dos
ateísmos é de fachada ou ao menos algo muito inconsistente, mambembe, um
ateísmo bem vagabundo que presta um desserviço aos verdadeiros ateus
racionalistas, se é que existem em uma porcentagem considerável. O apego à
simbologia satânica e imagens demoníacas é sintoma de um ódio irracional à
cultura cristã, é indicativo de uma personalidade complexada, movida por um
transtorno opositivo desafiador. Trata-se de ateísmo irracional que depende de
slogans pró-ciência e pró-racionalismo para manter-se satisfeito, mas não é nem
um, nem outro.
Colocada contra a
parede, a pseudo-racionalidade fica premida pelo seguinte dilema: por que o
descrente militante se torna anticristão ao se deparar com o cristianismo, mas
não antissatânico ao se deparar com o satanismo? Ou mesmo anti-pagão, caso a
contraposição seja feita ao neopaganismo? O anticristão é, via de regra,
satanófilo, embora não necessariamente satanista. Sua base não é a fria
rejeição de crenças não verificáveis cientificamente, mas possui sim base
emocional. Ele não apenas não acredita em Deus, como também odeia a simples
possibilidade de sua existência.
O ateísmo militante se
apresenta hostil ao cristianismo, mas se mostra dócil às palhaçadas esotéricas
e satanistas. Sua reação supostamente racional às crendices é uma falsa
justificativa de oposição à Igreja, buscando a integração a correntes que visam
reformular a narrativa bíblica e seus consectários. Então, o secular clama por
fantasias e brinca com o charme exótico ao pendurar pentagramas, cruzes
invertidas, imagens consideradas blasfemas e deuses estranhos à sua cultura, o
que acaba por produzir um resultado bizarro: rejeitar o cristianismo, enquadrando
como superstição rasa, ao mesmo tempo em que se tolera, quando não se louva,
elementos ocultos, pagãos e satânicos, que também representariam entidades
inexistentes.
Vê-se que não há nada
de racional ou materialista nessas personalidades, o que há é a busca de um
pretexto para se posicionar contra a estrutura metafísica cristã existente. Portanto,
tudo fica mais claro quando se remove o véu da racionalidade com o qual se apresentam
para o público, quando se cobra coerência do materialismo, que aparentemente
serve de suporte às premissas ateias, descobre-se uma dimensão de crenças
alternativas cultivadas por eles, envolvendo entidades e suas representações das
quais não abrem mão e contra as quais não abrem fogo na mesma intensidade com
que fazem contra o “Deus bíblico”.
Enquanto o gnosticismo
acena para um mundo fantástico, cujas chaves, concedidas aos seletos, foram
obtidas pelo deslumbrado, o materialismo fetichista lida com o mito da tábula
rasa e com o potencial de reformular a criação. Em Mitologia científica do
comunismo, Lucian Boia expõe como as crenças socialistas sempre
necessitaram, como sustentáculo, de um conjunto de mentiras coletivas que
funcionavam como estímulo ao poder revolucionário e às suas pretensões.
Ele delineia uma série
de mitos, dentre os quais pontuo os seguintes: O mito da razão (segundo o
qual a razão possui fundamento em si própria). O mito da ciência (a
ciência tem dupla vocação, a de explicar de maneira completa e definitiva o
mundo e também de modificá-lo). O mito das leis históricas (uma
espécie de mecanicismo de leis que regem a atividade dos homens e explica cada uma
das etapas da humanidade). O mito da presciência científica (a
capacidade de prever cenários futuros e de conhecer espaços longínquos). O mito
do progresso amparado pelo da evolução (estipula que há um movimento
ascendente na história – os que vieram depois são superiores aos que vieram
antes – isto será o ponto nodal para o cronocentrismo). Por fim, o mito
do novo mundo (o mundo do amanhã é essencialmente diferente do de
ontem) e o do novo homem (a essência humana pode se modificar e atingir
outros estágios, por exemplo, com o novo homem soviético e o homem ariano,
cujos superpoderes teriam sido perdidos após reproduzir-se com povos
inferiores). Diz Boia que “sobrepondo-se
à maior parte desses mitos, o mais forte e operante entre todos, o mito milenarista, arquétipo durável do
imaginário, em sua variante religiosa, mas também e, sobretudo, no século XIX,
em suas versões secularizadas”[19].
No recente desfile
ocorrido em Beijing, em 3 de setembro de 2025, um microfone captou a conversa
entre Putin, Xi Jinping e Kim Jong Un sobre as possibilidades científicas de
prolongamento da vida, pelo menos até os 150 anos. Não se trata de tema
inédito: já no regime de Kim Il Sung havia sido criado um instituto dedicado à
longevidade, cuja única finalidade era manter o líder comunista vivo. Kim Il
Sung faleceu em 1994 aos 82 anos, vítima de ataque cardíaco.
Vencer a morte, os
limites humanos e tornar-se um deus. Se não for possível a imortalidade, ao
menos a amortalidade (impedindo a morte por envelhecimento e doenças). Mas,
como se vê, nunca se fecha a perspectiva para trabalhar apenas no campo exato
específico, cuja racionalidade é motivo de orgulho, deseja-se ir além e
mergulhar em práticas esotéricas e fetichistas de satanismo. O povo hebreu, em
sua marcha para a terra prometida, era picado por cobras, fato que levou Moisés
a colocar uma estátua de serpente, indicando que bastaria que olhassem para ela
quando fossem picados e então estariam curados.
Porém, os líderes
materialistas também procuravam seus totens, colecionando amuletos e fomentando
pesquisas não ortodoxas, alheias ao laicismo oficial de seus regimes. Cartazes
na União Soviética instruíam os pais a notar habilidades paranormais em seus
filhos e notificarem o governo para fins de estudo e aproveitamento
estratégico. Embora os fenômenos sobrenaturais fossem objeto de zombaria nas
universidades sucateadas, os institutos militares demonstravam seriedade e se
prestavam a custear pesquisas, ao tratar de questões como essa.
No livro de Boia, já
citado, vê-se uma campanha dos revolucionários pela erradicação da morte. O
marxista John D. Bernal era um desses propagandistas de tal campanha e escreveu
um artigo intitulado “A ciência pode fazer a morte recuar”, publicado em
fevereiro de 1952.
Tratar as doenças é, em si, uma
confissão de fracasso; uma sociedade verdadeiramente sadia não deve permitir a
doença nascer nela. Nem a velhice, nem a doença são males necessários... a morte
mesma não é uma necessidade absoluta, mas uma necessidade determinada pelas
circunstâncias; quando compreendermos mais, saberemos adiá-la e talvez suprimi-la”.
O que não ocorrerá em qualquer lugar, mas “nos países onde os homens empregam
sua inteligência para criar o bem-estar de todos, um novo espírito, uma nova
cultura”. Na União Soviética, na China...[20]
Ora, ora... Há uma
promiscuidade entre desprezo manifestado pelas correntes racionalistas pelos
tópicos teológicos e metafísicos, em contraste com as alianças e mutações pelas
quais essas tais correntes podem passar, elas podem se apresentar com muito
mais flexibilidade, dando forma a um ecletismo curioso. O que explica a conexão
entre as ideologias do materialismo histórico e os esoterismos, como os de
Blavatsky e Crowley.
O próprio Aleister
Crowley[21] é
uma figura que passou por significativas transformações de crenças ao longo de
sua trajetória. Nascido Edward Alexander Crowley em 12 de outubro de 1875, em
Royal Leamington Spa, Inglaterra, Crowley cresceu em um lar cristão, tendo perdido a fé já no
início de sua juventude. Vindo de uma família abastada, pôde viajar bastante
pelo mundo. Em 1898, juntou-se à Ordem Hermética da Aurora Dourada, organização
esotérica rosacruz. Durante a sua viagem ao Egito, em 1904, alegou ter passado
por experiências místicas a partir das quais escreveu “O livro da Lei”,
contendo ditados supostamente fornecidos por um ser espiritual que atendia pelo
nome de Aiwass. Foi nessa oportunidade que Crowley teria formulado o seu mais
famoso ensinamento: “faça o que tu
queres, pois é tudo da lei”. Ancorado na vontade, Crowley tinha um nome
para a sua nova religião: Telema (do grego Thelema, significando exatamente
isso: vontade). Ele teve uma morte discreta e a sua influência acabou se
expandindo postumamente.
Apesar do profundo
mergulho no esoterismo, o cristianismo inicial de Crowley foi sucedido por uma
fase ateia (entre 1887 e 1898), quando ele alimentou um ceticismo
“racionalista” crescente acompanhado da rejeição das religiões organizadas.
Durante a adolescência passou a levantar questionamentos sobre inconsistências
bíblicas, fazendo avanços agressivos contra a moral da época e se comportando
com rebeldia, passando da rebeldia ao fumo, do fumo à bebida, desta à
masturbação, e da masturbação para sexo com prostitutas, tendo contraído
gonorreia aos 17 anos. Dentre as obras que o teriam influenciado encontram-se A Origem das Espécies, de Charles
Darwin, e História do Conflito entre
Religião e Ciência, de John William Draper, que o conduziram ao racionalismo
e ao materialismo. John Smynods destaca que havia em Crowley[22]
uma revolta contra a moral e religião de sua época, outros pontuam que suas
posições políticas pendiam de acordo com convicções metafísicas e espirituais.
Marcos Pasi revela a simpatia que Crowley nutria tanto pelo nacional-socialismo
quanto pelo marxismo-leninismo, como sói acontecer com personalidades que não
se definem nem pela direita nem pela esquerda, mas que gostam da despirocagem
revolucionária, seja qual for a máscara com que se apresente.
Pasi ainda complementa
no sentido de que
O que Crowley apreciava no nazismo
e no comunismo, ou ao menos o que lhe despertava curiosidade, era a posição
anticristã e as implicações revolucionárias e socialmente subversivas desses
dois movimentos. Em seus poderes subversivos, ele via a possibilidade de uma
aniquilação das antigas tradições religiosas e a criação de um vazio que a
Thelema, posteriormente, poderia preencher[23].
Do exposto, percebe-se
que o mago materialista é um tipo bem ilustrativo do pseudo-racionalismo, presente
nos ateísmos (ou agnosticismos), bem como da tendência de se transmutar em
outro tipo de crenças, ou de mostrar-se complacente com elas, percebido a
potencialidade do fator contracultura como instrumento para desafiar a
sociedade existente. Notem como os pseudo-racionalistas, rejeitando as chaves
metafísicas cristãs, são suscetíveis de recair em tópicos como mitos
ufológicos, nova era, resgate pagão ou luciferianismo propriamente dito.
Enquanto na posição de
cético, Crowley foi acumulando material e se impregnando de noções esotéricas,
adquirindo obras como The Book of Black
Magic and of Pacts de A. E. Waite e The
Cloud upon the Sanctuary de Karl von Eckartshausen. Integrou também em seu
pensamento elementos da cabala, alquimia e do misticismo oriental, influenciado
por figuras como Julian Baker e Allan Bennett. Longe de a fase cética ser um
obstáculo para devaneios do oculto, ela constituiu um convite para tudo o que
não fosse concernente à chamada “religião organizada”, ou seja, à religião
cristã.
Como escreve Lucian
Boia,
Costuma-se crer que a razão tenha
travado uma guerra impiedosa contra tudo o que não fosse razão. Nesse caso, as
aparências enganam; não há aniquilação, mas reciclagem. A razão apenas reciclou
e dispôs conforme as regras da geometria (rigorosa, cartesiana) todas as
fantasias essenciais da humanidade. O imaginário, incluindo suas manifestações
mais desmedidas, encontraria na razão seu melhor álibi, seu lastro de respeitabilidade.
Oferecer uma explicação completa do mundo e ao mesmo tempo reformá-lo a seu
gosto – eis os dois traços fundamentais da nova mitologia racionalista[24].
CONCLUSÕES
As correntes céticas
não surgiram do nada, pertencem a uma tradição de pensamento que remonta ao
estágio de ruptura entre a civilização cristã, de viés escolástico e
cristocêntrico, até o ocidentalismo atual, identificado por alguns pensadores
como fase de esgotamento da religião cristã, como se lidássemos apenas com a
casca da cristandade, sem substancialidade alguma. Essas correntes se
identificam com a noção de racionalidade, gostam de se imaginar racionais,
lógicas, metódicas e manuseadoras da navalha de Ockham, cortando o “deus das
lacunas” dos acontecimentos passíveis de explicação pelo método científico.
Apesar de encontrarmos antecedentes céticos nos pensadores da Grécia Antiga, o
tipo de que tratamos se manifesta mais fortemente a partir das grandes
revoluções, dentre as quais a Revolução Francesa.
Em prefácio à obra de
Daniel Mornet (Os Intelectuais da Revolução Francesa), Laura Palma,
referindo-se à erupção política ocorrida em 1789, comenta que “uma tempestade sem precedentes como essa não
foi gestada pela falta de pão”[25], ciente
do fato de que são as ideias e a vontade humana, não as condições sociais e
econômicas, que determinam as grandes modificações no panorama social. Nesse
sentido, encontram-se décadas de solapamento espiritual e filosófico por obra
do Iluminismo, ora professando um anticlericalismo intenso, ora adotando uma
abordagem mais humanista em busca de uma suposta religião natural, caindo no
deísmo.
O esquema de valores que sustenta uma
civilização segue a seguinte sequência: 1) Religião; 2) Cultura; 3) Política
Geral; 4) Política Formal. Os revolucionários percorreram todas essas etapas,
explorando o que viam como inconsistências dos dogmas, até que essa
racionalidade se transmutasse no culto da deusa razão inaugurado por Maximilien
Robespierre.
Esses surtos de
racionalização e quebra de ídolos, seguidos de levantamento de outros,
acompanharão a história humana em seus movimentos políticos e culturais de
cunho anticlerical, de maneira que o importante não é ser hostil às crenças,
mas sim travar combate contra o cristianismo (ao catolicismo em particular) e,
para tanto, admite-se a conjugação de várias formas de espiritualidade. Trata-se de um plano de guerra cultural posto
em execução.
As correntes
filosóficas passam a enfatizar o papel do sujeito em detrimento do objeto, a
mente ofusca a realidade e já no “penso, logo existo” está contida a fórmula
dos subjetivismos dos séculos subsequentes. Assim, o racional que pretendia se arvorar
na matéria para interpretar tudo o mais realiza o caminho inverso e passa a
adotar uma via solipsista.
Com o desdobramento
desse primeiro impulso, as vertentes filosóficas paradoxalmente colocarão em
dúvida a própria noção de eu e de realidade. Portanto, o ímpeto lógico e
metódico revela-se como pseudo-racionalismo, procedendo à quebra do eu, à negação
geral dos significados, pavimentando o caminho para espiritualismos, desde que
possuam uma aura dotada de transgressão, como o charme do oculto, o resgate
pagão, apego satânico e manias esotéricas dessa estirpe.
Tentando desmistificar
o transcendente, os ateus e agnósticos conseguiram colocar em dúvida o próprio
mundo existencial terreno, eles sequer sabem mais o que são ou se são.
Desconhecem a diferença entre evidência e prova, pedindo provas sobre Deus,
recusam evidências de fenômenos menores que acontecem na própria materialidade
da vida.
Existe um componente
irracional inserido no raciocínio secular que maculou inclusive os denominados
quatro cavaleiros do ateísmo, incapazes de travar resistência às pseudociências
de sua época, convertendo-se em sustentáculos para as pretensões
revolucionárias que nada mais são do que iniciativas deformadoras das suas
respectivas sociedades. Em suma, o novo ateísmo é um impulsionador de todas as
propostas de subversão do racionalismo.
O discurso
pseudo-racionalista morre pela própria boca. É preciso colocar o subjetivismo
no seu devido lugar e restaurar a sanidade, reafirmando o eu, a matéria e a
conexão entre ambos, o que inevitavelmente conduzirá à expulsão da
pseudociência, acentuada pelo pós-modernismo e tendências desestruturalistas,
como ocorre com a ideologia de gênero, e de pseudofilosofias clássicas, como é
o caso do niilismo, que de racional não tem nada.
E mais, utilizando as
lentes seculares para desmistificar os mistérios bíblicos, jogando-os de lado
como irrealidades, os mesmos secularistas mergulham na simbologia gnóstica,
tratando de suas nuances e profundidades. Esse duplo tratamento não se
sustenta, pois, se a história bíblica é tomada como irreal e descartável por
ser considerada falsa, o mesmo destino deve ser reservado a toda e qualquer
crença, seja pagã, satânica ou oriental. Ou a capacidade de interpretação simbólica
é exercida em sua plenitude ou não é de maneira alguma.
Cabe notar ainda que,
se o antiteísmo é compatível com o apego simbólico gnóstico, com o “ateu”
insistindo em identificar-se com o profano e sua simbologia (se é provocação ou
não, pouco importa), nada obsta que os ateus e agnósticos rejeitem a
demonolatria ou paganofilia e se denominem cristófilos, por razões igualmente
simbólicas ou culturais.
O mundo moderno também
depende da propagação de mitos, mas desta vez apresentados com uma linguagem
científica e secularizada. Portanto, se existe um embate no qual os
racionalistas podem provar a sua verdadeira competência, este é aquele que
ocorre entre a razão e a falsa razão. Se os racionalistas não conseguem solucionar
o problema das pseudociências que crescem nas suas respectivas áreas (e ao
contrário, as fortalecem) não têm nem com que se preocupar em matéria de
inconsistência dogmática da Igreja. Se os padres exorcizam demônios com a
autoridade do reino espiritual, os racionalistas precisam exorcizar, mutatis mutandi, a pseudociência de suas
especialidades, missão na qual têm fracassado miseravelmente, partindo para o
tratamento da ciência como um amuleto e lugar-comum, a partir do qual conferem
impulso a transformações sociais de cunho político-ideológico, sua razão de ser
e garantia de verba, emprego e status.
Está correta a sentença
segundo a qual “o sono da razão produz
monstros”, mas o que pode ser complementado é que o pseudo-racionalismo,
encampado pelos secularistas, é um caminho pavimentado para a sedimentação misticismos
variados.
[1]Richard
Dawkins - If I meet God when I die? Disponível
em https://youtu.be/SdhvszEQyrM?si=YexUFb0vg2pSe7hP
[2]
“César Bórgia como papa... Compreendem-me? Pois bem, essa teria sido a vitória
pela qual hoje anseio - : com ela o Cristianismo estaria abolido! – O que
aconteceu? Um monge alemão, Lutero, foi a Roma. Esse monge, tendo nele todos os
instintos vingativos de um sacerdote fracassado, indignou-se em Roma contra o
Renascimento...” NIETZSCHE, KSA, AC, § 61, 1999, p. 251. Citado em “Nietzsche e
Lutero: Consciência, Culpa e Justificação” - Portal de Periódicos da UnB,
disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/download/12594/11007/
[3]
“Sou um discípulo do filósofo Dionísio, preferiria antes ser um sátiro a ser um
santo” (NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo.
Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo (SP). Companhia
das Letras, 2008. P.15)
[4]
LUBAC, Henri de. The Drama of Atheist Humanism. Ignatius Press. San Francisco.
1998. P. 499
[5]
Idem. P. 93.
[6]
Idem. P. 91.
[7]
GODWIN, Joscelyn. The Pagan Dream of the
Renaissance. Thames & Hudson. 2002. P. 257
[8]
Idem. P. 172.
[9] Karl
Marx’s Obsession With the Devil. https://www.historyspage.com/post/karl-marx-obsession-with-the-devil
[10]
Idem.
[11] A Internacional. https://www.marxists.org/portugues/tematica/musica/international.htm
[12]
Idem. Entrevista completa: Karl Marx
Meets the Devil: A Conversation with Historian Paul Kengor. https://albertmohler.com/2021/02/10/paul-kengor/
[13] Aglomerados no termo “terceira
posição”, fórmula genérica que reúne todos os esquemas políticos similares ao
fascismo e nacional-socialismo, levando-se em conta a peculiaridade de cada um
dos países, o neo-eurasianismo não é senão resgate de algo que surgiu em
1920. Ortodoxos, islâmicos, budistas,
ateus, agnósticos. O que todos eles têm em comum, em sua base, é o
anticatolicismo em essência, suavizado pela propaganda e discursos duplos que
eles dirigem a cada um dos grupos ideológicos.
[14] DEROSA, Cristian. O Sol Negro da
Rússia. P. 183.
[15]
Idem. P. 184.
[16] Raízes
neopagãs da revolução russa. https://www.estudosnacionais.com/38974/raizes-neopagas-da-revolucao-russa/
[17] Insight dado por Jeffrey Nyquist
em um de seus artigos.
[18]
HASKINS, Charles Homer. A Ascensão das Universidades.
Danúbio. Santa Catarina, 2015. P. 12
[19]
BOIA, Lucian. A mitologia científica do
comunismo. Tradução Bruna Torlay. São Paulo: Faro Editorial, 2024. P.47/48.
[20]
Idem. P. 161.
[21]
Aleister Crowley. British occultist. https://www.britannica.com/biography/Aleister-Crowley
[22] Symonds, John (1997). The
Beast 666: The Life of Aleister Crowley. London: Pindar Press. Nota
presente em https://en.wikipedia.org/wiki/Aleister_Crowley
[23] Pasi,
Marco (2014) [1999]. Aleister Crowley and the Temptation of Politics.
Ariel Godwin (translator). Durham: Acumen. Nota presente em: https://en.wikipedia.org/wiki/Aleister_Crowley#cite_note-FOOTNOTESymonds1997vii-263
[24]
BOIA, Lucian. A mitologia científica do
comunismo. Tradução Bruna Torlay. São Paulo: Faro Editorial, 2024. P.18.
[25]
MORNET, Daniel. Os Intelectuais e a
Revolução Francesa. Editora Caravelas. São Paulo (SP), 2024. P. 12