domingo, 5 de outubro de 2025

Primeiro ateu, depois gnóstico - a racionalidade secular como mera transição para o gnosticismo - parte 1

 


INTRODUÇÃO

Quem se debruçar sobre obras voltadas para leitores seculares encontrará uma proposta para os religiosos que porventura tenham aqueles livros nas mãos, o convite no sentido de que eles testem a sua fé. Estabelece-se um divórcio entre fé e razão, mas não apenas isso, a expectativa traçada por eles é a de que a razão proceda ao julgamento da fé. Porém, mais interessante do que a razão julgar a fé é a razão julgar a si própria. Façamos então o julgamento da razão contra a “razão”, testando até que ponto os assim denominados racionalistas estão de acordo com a estrutura da realidade e as condições psíquicas mínimas para filosofar sobre temas complexos, e qual é o background cultural que eles possuem para que assim façam com tranquilidade.

Num primeiro momento, o ateísmo pode parecer algo intuitivo e produto do livre questionamento de uma personalidade curiosa, o ateu, em tese, seria um questionador por excelência. Porém, lendo em retrospecto, o ateísmo ou agnosticismo teria surgido do nada, como produto natural do pensamento, com as meras dúvidas da época de ensino médio, quando o adolescente fazia seus primeiros questionamentos? A que tradição secular esses questionadores pertencem? Nem todos os ateísmos são iguais, chegou-se mesmo a sugerir a necessidade de uma ciência própria chamada de “ateísmo comparado”, porque os descrentes variam conforme as culturas de que provêm, um ateu ex-judeu não é a mesma coisa que um ateu ex-cristão e este, muito menos, possui alguma similaridade com um agnóstico que tenha provindo de uma cultura islâmica.

Em que pese a sedutora proposta, ela demandaria mais tempo e meticulosidade, por tal razão limitemo-nos ao ateísmo ocidental da cultura cristã, com os pensadores clássicos que visaram impugnar as suas bases.

 

 

PARTE I – A AURORA DA RAZÃO E SEUS CONSECTÁRIOS

Quando o jovem atual começa a exercer seu pensamento crítico e reunir elementos para formar suas próprias convicções, ele se contrapõe ao meio, pois, via de regra, toma contato com doutrinas que reproduzem a tendência de erodir os fundamentos religiosos da sua cultura. De fato, o aprendizado de outras culturas é, no mesmo ato, também um processo de “desaculturação”, por meio do qual o sujeito rompe a limitação do seu meio e passa a absorver novos conceitos e modos, especialistas salientam que civilizações inteiras foram reformuladas pelo simples contato com povos mais desenvolvidos e tecnologicamente superiores. 

Se observarmos a história ocidental, nota-se uma constante: a autocrítica por parte dos livre-pensadores contra os galhos que os sustentam, os mesmos fatores que antes se mostravam edificantes passam a ser considerados perniciosos pelas novas gerações, que se permitem seduzir por um orientalismo que promete devolver a espiritualidade perdida, ou mesmo enxergam a destruição de monumentos à cultura consolidada como sinal de construção, no mesmo ato, de um novo mundo ou etapa para uma civilização laica.

Embora a Revolução Protestante seja um fenômeno intrinsecamente religioso, a ruptura inaugurada por Lutero com relação à Igreja Católica é precursora do questionamento dos dogmas que, séculos mais tarde, apareceriam em movimentos seculares.  Assim como Calvino, desferiu-se um golpe considerável contra a estrutura cristã basilar, entregando-se regiões inteiras da Europa para doutrinas heréticas, que puderam se espalhar para outras regiões do mundo, tudo com base numa ideia de autonomia intelectual no ato de interpretar as escrituras, o intelecto, portanto, desafia o meio.

Nietzsche fornece uma leitura invertida desse acontecimento histórico. Segundo ele, Lutero revigorou o cristianismo[1] ao promover a revolução protestante, tirando o poder da Igreja e transferindo-o aos príncipes e suas igrejas locais, como se o protestantismo de seitas múltiplas fosse superior à estrutura unificada, deixada por Cristo a Pedro e seus sucessores e que tem sobrevivido ao teste do tempo, apesar de todas as crises. Para Marcio Gimenes de Paula, “O que temos que, talvez, pensar é que se Nietzsche será um crítico da modernidade, Lutero é o seu pai. Logo, a crítica nietzschiana deseja atingir o fundamento da modernidade, por isso atinge Lutero e todos os ideais do que depois se constitui na modernidade. Se pensarmos que a principal crítica está na genealogia da modernidade, estamos na pista correta”[2].

A revolução protestante é considerada a primeira revolta metafísica paradigmática, embora ainda carregada de fervor religioso[3], em contraste ao modo de sentir dos revolucionários franceses, já despidos dessas amarras, que consideravam simples crendices.

Contextualizando as influências por meios das quais os descrentes contemporâneos formam as suas convicções, nos primeiros anos de estudo, tanto na fase de ensino médio quanto no período em que o jovem cursa disciplinas na universidade, as leituras começam a se acumular e os filósofos iluministas preenchem o imaginário como antepassados do racionalismo antirreligioso. Todo racionalista tende a guardar um sentimento de pertinência com relação aos filósofos iluministas, a exemplo dos enciclopedistas franceses. Para essa geração de pensadores do século XVIII, ou fundia-se todas as religiões num caldeirão comum e sustentava-se o deísmo ou zombava-se da religião hegemônica, buscando descredibilizá-la e atacar o clero.

Daniel Mornet comenta sobre essa ideia, que passou a ser patrimônio comum dos escritores da época, a “existência de uma ‘religião natural’, revelada pela consciência a todos os homens que refletem, e que não necessita de milagres, textos obscuros, teólogos, universidades, prisões ou carrascos para ser comprovada e imposta. Essa religião, que fundamenta as religiões reveladas ou que pode até mesmo dispensá-las, dá origem ao deísmo[4]

Se fizermos um rápido apanhado dos pensadores, veremos que Rousseau[5] era um deísta, ele deixava de lado a religião cristã e apegava-se a uma visão simplória de que o que importa é “seguir o coração”, apresentando a fórmula do amor como atalho e substitutivo de edifícios teológicos complexos, ao tratar da religião civil ele pretendia estabelecer que as religiões seriam admitidas, ou não, conforme as necessidades do Estado, a tal ponto em que afirmou que “Quem ouse, contudo, dizer ‘fora da Igreja não há salvação’, deve ser banido do Estado[6] . Os cultos admitidos seriam inclusivistas, com dogmas flexíveis, perfeitamente compatíveis com as exigências do Estado, Rousseau estabeleceu traçados fundamentais para aquilo que seria chamado de Estado laico.

Segundo Diderot, tudo o que teve começo, terá um fim, se as religiões tiveram um começo, elas também terão um fim, tendo esse pensador também dito que "Se a razão é uma dádiva do céu, e se o mesmo se pode dizer quanto à fé, o céu nos deu dois presentes incompatíveis e contraditórios"[7]; John Locke, por sua vez, afirmou que as crenças são produto do ambiente[8], levando-se em conta a junção de clima, costumes, economia e outros fatores correlatos, encontraremos também em Montesquieu passagens que sustentam essa visão do ambiente como fator definidor dos hábitos e costumes[9].

Voltaire teria dito que se com 12 pescadores ignorantes a religião cristã foi difundida, com três intelectuais ele poderia derrubar a fé e a Igreja Católica. Em 1758, respondendo a alguém que dizia que ele não chegaria a lugar algum nessa empreitada de eliminar a religião, o escritor respondeu que a pessoa “esperasse para ver”, Voltaire teria dito “daqui a vinte anos, Deus estará vencido”. Exatos vinte anos depois desse episódio (em 1778), Voltaire morria[10].

Diderot publicou a obra “Da interpretação da natureza” (1753), na qual reafirmou a eternidade da matéria e subscreveu o materialismo, assim como Helvétius, que pontificava acerca da influência decisiva do meio sobre o indivíduo. Sua doutrina caminha no sentido de que as pessoas nascem como tábulas rasas, são iguais, as diferentes formas de vivência vão imprimindo a sua marca nas individualidades, influenciadas pelo processo educacional. A matéria é igual, a diferença consiste nas sensações e na educação recebida, dirá ele que “a dor e o prazer são os únicos motores do universo moral, e o sentimento de amor próprio é a única base sobre a qual se podem lançar os fundamentos de uma moral útil[11].

Nessa época, encontrava-se em voga a mania de histórias exóticas sobre povos primitivos que vinham sendo descobertos pelos europeus. A ideia de que a religião perverte o meio veio acompanhada do mito do bom selvagem, confeccionado nesse contexto. Houve a idealização de nativos intocados pelos “males da civilização” e que, mesmo desconhecendo os dogmas e mandamentos, ainda assim se mostravam bons. A concepção dos deístas era de que havia uma religião natural que pudesse ser extraída da própria natureza do homem, não necessitando do caminho apresentado pelas religiões reveladas, quando o verbo teria se feito carne. Para os pensadores anticlericais, a carne sempre encerrou uma mensagem a ser extraída, bastaria conhecê-la e descobrir o código moral segundo o qual o homem seria bom por si, independentemente das estruturas religiosas, bastando observar a natureza.

Entretanto, guerras, saques e violações eram práticas também daquelas populações primitivas, a história do bom selvagem não passava de mito fabricado.  Os primeiros colonos foram vítimas de tribos canibais e os portugueses souberam instrumentalizar as rixas que tribos distintas possuíam umas contra as outras, o que demonstra que um estado de guerra e brutalidade sempre existiu. Isso para não falar das práticas de exposição de recém-nascidos, baseadas em superstições presentes até os dias atuais em algumas etnias brasileiras. Os Astecas tinham seus rituais de sacrifícios e extração de órgãos das vítimas, sendo que no cristianismo tudo isso poderia ser substituído pelo consumo da hóstia[12]. A derrota dos Astecas pelos espanhóis foi um alívio para as tribos que eles subjugaram, os invasores europeus eram vistos com menor animosidade por aquelas demais tribos. 

Apesar desse histórico, os livre-pensadores instaurarão um padrão entre as correntes antirreligiosas: serão tolerantes com relação às práticas religiosas estrangeiras, primitivas e pagãs, mas demonstrarão forte aversão à religião cristã (e católica em particular). Já aqui podemos deixar plantada a dúvida sobre até que ponto a revolta desses senhores é fundamentada na indignação diante de crenças tolas que tomam como objeto de veneração deuses inexistentes, eles tomam contato com sacrifícios, dancinhas rituais, macumbas, canibalismo, um conjunto de práticas que não leva a lugar algum, mas o sentimento deles é de docilidade e tolerância; quanto ao catolicismo, por outro lado, a ressonância cultural provocada por catedrais, mosteiros, expressão artística visual e musical (com temáticas bíblicas), o clima com relação a este último conjunto é de hostilidade. 

Analisando esse panorama ideológico do século XVIII, é necessário traçar pelo menos dois ramos, duas tradições, a partir das quais haverá a adoção de postura com relação às crenças: pode-se adotar a linha deísta ou a linha ateísta/agnóstica.

Mornet esclarece que:

 

A filosofia de Voltaire era a razão crítica e irônica, um ceticismo temperado pelo gosto pela atividade útil e mesmo benéfica; ela não pretendia revelar os segredos do mundo; limitava-se a combater aqueles que alegavam possuí-los e explorá-los em seu proveito; contentava-se com visões curtas, aplicáveis, sem demora, à vida neste mundo. Os discípulos de Rousseau, ao contrário, buscavam nele entusiasmo, vastas esperanças, uma espécie de religião ao mesmo tempo divina e humana[13].

 

Em outros termos, uma postura mais militante e sarcástica e outra que busca a acentuar o deísmo, dando vasão a uma espécie de necessidade religiosa natural dos seres humanos. Aqui, a diferença é de método e abordagem, já que esses dois pensadores eram deístas, o dilema fica sendo o seguinte: vamos ridicularizar as crenças como produtos irracionais ou vamos adotar uma religião mais profunda, seleta, mais condizente com a natureza humana? Bom, o movimento revolucionário não enxerga essas alternativas como mutuamente excludentes, ele adotará ambas, ora fomentando a racionalidade cética (embora isso seja um oxímoro, como veremos adiante), ora promovendo a defesa de uma religião alternativa ao que enxergam como status quo.

É natural das personalidades questionadoras se indignar com o fato de que existem grupos sociais que sustentam crenças aparentemente absurdas e, a partir daí, se dissociarem da comunidade dos fiéis, adotando uma postura crítica. Nesse campo inserem-se as correntes agnósticas e ateias. Os escritores ateus dizem que, considerando que as religiões se apresentam como portadoras da verdade, cada uma é descrente com relação à outra, querendo com isso concluir que cada uma é ateia com relação às demais. Tentou-se criar um campo de estudo, pois, havendo interesse em estudar as religiões como fenômenos sociológicos e produtos da cultura, deveria ser possível enfileirá-las todas num rol, como se classificássemos espécies diferentes ou correntes ideológicas distintas, originando o estudo das religiões comparadas. O observador então se coloca numa posição de superioridade e sustenta a equivalência de todas as vertentes religiosas, isso primeiro é introduzido como um método e depois é tomado como fato.

Alguns que fazem esse esforço consideram que todas as religiões possuem um fundo comum ou se referem ao mesmo Deus, concepção que será condenada, pela perspectiva cristã, como perenialismo.

Os verdadeiros ateus ou agnósticos adotam essa perspectiva ampla de análise das religiões como mero critério metodológico para compreender as diversas doutrinas, sem crer em nada ou sustentar corrente alguma; os demais filhos do iluminismo, afinados com a visão de ruptura com a civilização cristã, também procuram enxergar as religiões a partir de uma visão panorâmica, mas não para estudá-las apenas enquanto fenômenos sociológicos. Eles procedem no sentido de vislumbrar sinais da tradição primordial que alegam existir nessas várias religiões, para que possam chegar ao núcleo da “verdadeira tradição”, da qual todas as demais não são senão sombras imperfeitas ou portas de entrada por meio de seus ritos iniciáticos. Grosso modo, é como se existisse a “religião do gado”, aquelas formas religiosas que satisfazem as massas, e a “verdadeira tradição” que os gostosões perenialistas conseguiram encontrar.

Então temos aqui duas vias, a primeira sendo da mera compreensão, a segunda da obsessão, porque são pessoas obcecadas por questões místicas e esotéricas. O meu ponto é que, embora essas perspectivas estejam formalmente separadas, nota-se que com o tempo elas começam a se aproximar, os ateus se tornam cada vez mais entremeados em noções de misticismo e correntes esotéricas múltiplas, abandonando aquela roupagem racionalista, exata, metódica e que despreza fantasmagorias, imagem doutoral que vira apenas enfeite de fachada.

O que é exatamente a racionalidade dos ateus? Os ateus que se apresentam como racionalistas são, na prática, aliados diretos da pseudociência promovida por agendas ideológicas e a sua suposta racionalidade não resiste a um olhar mais apurado e rigoroso, suas inconsistências vão se apresentando até que se revelem como algo próprio e natural da militância anticristã como um todo. Em determinado evento que reuniu Richard Dawkins e Matt Dillahunty, dois ateus de destaque, ambos aderiram integralmente à noção de gênero (que é abstrato, linguístico e fluido), como substitutivo do sexo (elemento biológico, concreto e real). Ainda assim, pretendem pronunciar-se com autoridade sobre as grandes questões do universo, envolvendo galáxias, espécies e a mensuração de eras com base em rochas.

São temas comuns ao cientificismo, que busca demonstrar domínio da matéria, embora a despreze prontamente quando a pseudofilosofia de ocasião assim determina. Richard Dawkins só veio elevar o tom contra a pseudociência depois de muito tempo, naquele evento ele já era renomado biólogo e já deveria, desde já, ter cortado aquela patética ficção que pretende se arvorar como constructo acadêmico respeitável, mas não o fez.

Em 2021, Dawkins perdeu o prêmio de humanista do ano, dado em 1996, por negar a identidade dos disfóricos e dizer que se trata de mera questão semântica, separando o ponto de vista dos cromossomos do da “autoidentificação”. Ele acabou rompendo com uma associação de defesa do ateísmo, porque ela retirou do seu site um artigo escrito por ele e no qual defendia o primado biológico do gênero[14]. As correntes antirreligiosas passam a sofrer cisões por conta de pseudociências nela existentes que, com fundamento ideológico e linguístico, disputam entre si a hegemonia do movimento e que, se se tratasse de fato de um movimento a favor da ciência, elas sequer teriam encontrado espaço ali, para início de conversa.

Um amante da pseudociência afirmou: “Numa altura em que 76% dos ateus aceitam a existência de pessoas trans, de acordo com uma pesquisa do Pew Research Center de 2022, enquanto apenas 38% de todos os adultos americanos sentem o mesmo, é chocante ver o ateu mais famoso do mundo usar sua enorme plataforma para minimizar ou negar identidades trans’", escreve Hemant Mehta, escritor, podcaster e ativista ateísta dos Estados Unidos, em artigo publicado por Religion News Service – RNS, 01-08-2023[15]. O uso retórico da lógica e da razão é também verificado em produtores de mídia independente, como Matt Dillahunty (já citado) e outro chamado Dusty (antigo Cult of Dusty, atual Dusty Show[16]), que fazia vídeos pró-ateísmo e “lógica”, mas defende todo o complexo de falsificação de dados biológicos ancorado em pretextos linguísticos.

Ademais, o agnóstico Neil Degrasse Tyson também é outro que encampa ficções desse jaez. 

Dawkins, o principal nome é jogado de escanteio e é encarado como exceção, porque aquele público apoia, em regra, toda a agenda pseudocientífica que manipula a noção de ciência para as massas e procura enquadrar os religiosos como fatores impeditivos do progresso. No ateísmo militante encontraremos noções de racionalidade e de bom senso apenas em suas alegações iniciais, ou seja, na proposta, quando o adolescente questiona de maneira sincera aquilo que enxerga como mistérios, situações inexplicáveis e que, por isso, aparentem ser ridículas, pois frontalmente contrárias à maneira como as coisas acontecem no mundo, como é o caso dos milagres.  A racionalidade está para os ateus assim como a igualdade para as feministas, sob essas duas palavras esses dois movimentos chegam a objetivos completamente diversos.

Nesse primeiro momento, os ateístas e agnósticos parecem caminhar no sentido da exatidão intelectual dos fatos, citando pesquisadores e estatísticas, experimentos e teorias que gozam de prestígio nos círculos científicos e acadêmicos, procurando embasar as suas posições em algo que lhes pareça sólido.  A sugestão que devemos fazer, nesse caso, é forçar esse tipo de raciocínio até as últimas consequências, porque se são lógicos e coerentes nas suas premissas, assim também serão as suas conclusões, ou pelo menos deveriam ser.

O autor Sam Harris, que queria investigar uma moral independente da religião, acabou desmoralizando esse tipo de iniciativa, porque ele acabou sendo o arauto da moral artificial que disse não se importar se houvesse corpos de crianças mortas no porão de Hunter Biden. Um moralista ao seu modo, certamente. Harris considera um absurdo que existam pessoas convencidas de que a Terra não tem mais de 6 mil anos, mas com relação à empulhação dos ideólogos modernos que pretendem negar ou dissolver as noções de sexo no conceito linguístico de gênero, ele não se mostra nem um pouco indignado. É possível encontrar um lampejo de lucidez quando o referido autor reclamou sobre os perigos do islã radical, salientando que o então candidato Donald Trump estava tocando numa pauta negligenciada pelo espectro político democrata, em que Harris se insere. Esse acerto, porém, é um ponto isolado na trajetória de posicionamentos de Harris.

Tanto Harris quanto Hitchens se mostrarão dois feministões[17], dispostos a confirmar a dialética revolucionária dos sexos promovida pela agenda socialista que esfacela as noções elementares de bom senso e conforma os sistemas educacionais a padrões universais afinados com uma programação de emburrecimento geral. Teremos igualmente a defesa do aborto como forma de libertação das amarras morais de uma sociedade religiosa, isto é, o neoateísmo caminha lado a lado do feminismo e suas pautas socialistas, afinal de contas, o aborto[18] nada mais é do que uma expansão da liberdade feminina que esse tipo de agenda promete concretizar, pouco importando a existência do bebê enquanto fato biológico por si, de maneira autônoma ao organismo materno, embora dele dependa a sua nutrição até o nascimento.

Quanto à massa de ateus, eis que acaba cometendo o mesmo vexame, porque igualmente se tornam coniventes, acovardados ou indiferentes diante do poder das ONGs, redes de mídia que pressionam tópicos pertinentes aos grandes movimentos políticos de envergadura internacional e que, ao fim e ao cabo, pretendem impor pseudociências como viga mestra da atividade intelectual das universidades. Os ateus, supostamente racionalistas, deveriam ser os primeiros a reafirmar a exatidão da ciência econômica, contrapondo-se à pseudofilosofia marxista, deveriam também compor a vanguarda da defesa do óbvio, no que toca a dualidade sexual, sem a qual não há sequer teoria da evolução, portanto desafiando a pseudociência de gênero e travando combate ao aborto, porque biologicamente é um ser distinto da mulher que se encontra ali em gestação. Mas ao contrário, eles são dóceis nessas duas ocasiões, reafirmando tanto um quanto o outro, legitimando ficções econômicas utópicas e farsas linguísticas que pretendem violar a biologia.

Eles também deveriam ser capazes de aferir as verdades absolutas, seja no campo matemático, lógico ou moral, considerando que é próprio da racionalidade decifrar e reconhecer esses elementos permanentes e constitutivos da realidade, atribuíveis ou não a Deus. Mas não, não conseguem fazer isso, as correntes céticas são relativistas por excelência e, por isso mesmo, não conseguem ter razão firme sobre nada.

Se tivermos que fazer um juízo de valor sobre a escola ateia de pensamento, é necessário fazê-lo com base naquilo que os ateus, em geral, defendem. O pensamento ateu moderno é essencialmente feminista, apoiador da pseudociência de gênero, do socialismo, da intervenção estatal e centralização política promovida pela esquerda (que os ateus, em geral, defendem), ou seja, eles se situam decisivamente no campo revolucionário e se alinham àquilo que a má linguagem resolveu chamar de progressista. Eles tendem a ser politicamente engajados e costumam enxergar no eleitorado conservador cristão de seus países o inimigo natural datradição iluminista que encampam, olhando com simpatia a ideia do universalismo humano secular (globalismo ou homem como cidadão do mundo), por isso voltam os canhões contra as tradições nacionais de seus respectivos países.

Relativistas, pós-modernistas, observam os costumes como padrões que necessitam ser rompidos. Como eles identificam ciência com tecnologia, defendem a quebra de padrões éticos e a ampliação do poder tecnológico de controle, a manipulação do genoma e da identidade humana. Alimentam a convicção de que a ciência não pode ser parada e qualquer tipo de experimento que possa ser feito deve ser também considerado lícito e ético, flerta-se com o tanshumanismo, por exemplo. Levaram essa perspectiva tecnológica às consequências mais extremas e, adivinhem? Agora abraçam a teoria de que a civilização industrial corrompeu de maneira irreversível o modo de vida humano, mas antes esses mesmos senhores acreditavam no progresso interminável. É conveniente lembrar aquele otimismo de palha típico da Belle Époque, quando as grandes invenções e alterações bruscas, decorrentes do surto industrial, geraram nas populações ocidentais o sentimento de otimismo diante da expectativa de uma nova aurora maquinária.

Pipocaram movimentos como o futurismo, forte na Itália e que alguns atribuem precursor do fascismo. Não obstante, tudo isso caminhava pari passu à efervescência esotérica em vários círculos.

Por fim, o ateu promove a defesa do subjetivismo e isso o acaba situando no campo irracionalista, não no racionalista. Ao descambar para o subjetivismo, os pensadores saltam a realidade e transformam a mente em criadora de si mesma. Eu me pergunto que tipo de racionalismo é esse que dispensa a realidade como elemento prévio e estruturante do próprio indivíduo.

Some-se a isso a disseminação de correntes vazias de pensamento, como a reafirmação do nada promovida pelo niilismo existencial, uma arte de não entender nada, vivendo em círculos e procurando emitir juízos ao mesmo tempo em que negam os valores que os fundamentam. Se da afirmação do nada se extrai algo, implode-se a pretensão nulificante da existência no mesmo ato. Os niilistas estão completamente fora da rota traçada pelos racionalistas no sentido de interpretar a realidade, porque interpretação é extração de significados a partir da matéria, a negação de significados é impeditiva da interpretação e compreensão científica.

O neoateísmo tem se valido muito da onda intelectual pós-moderna, aquela mesma etapa filosófica que traz mais incertezas e desconstruções do que lucidez e ampliação do campo cognitivo. No existencialismo de Sartre, segundo o qual a existência precede a essência, o homem precisa se definir, formando o seu eu no mundo concreto por meio de atos voluntários de escolha, como um rio, projetando-se sempre para o futuro. Não por acaso, essa perspectiva ideológica será uma doutrina de ação e Sartre instigará seus existencialistas a uma postura de engajamento, como se esses discípulos do vazio compensassem sua sensação de abandono com uma contumácia ativista no campo político esquerdista. 

Houve um efeito contrário das ideologias céticas, porque, querendo desconstruir Deus, elas acabaram por inviabilizar a própria noção do eu humano enquanto dado da realidade. Em caminho diametralmente oposto aos delírios pós-modernos, a ideia por trás da adoção de uma perspectiva autenticamente racionalista é justamente a de reafirmar o eu, a individualidade racional e a sua capacidade de decifrar os fatos, chegando-se então à negação de ficções construídas pelas religiões, tudo isso com os pés no chão e em contato direto com a realidade. Isso que seria um racionalista secular, que só pode impugnar as evidências de Deus se, por óbvio, tomar a sua própria identidade como evidente ela própria.

Apesar de se filiar à vertente humanista, Richard Dawkins chegou mesmo a se juntar a outros intelectuais para questionar se o nosso mundo na verdade não é uma grande simulação de computador[19].

Essas hipóteses gratuitas parecem mais exercícios de debate que os antepassados céticos gostavam de travar. E por falar neles, vira e mexe a palavra “ceticismo” é encarada como se significasse um processo rigoroso e metódico de se obter conhecimento; quando uma pessoa assim se define, ela está querendo dizer que não aceita qualquer tipo de afirmação sem que antes a tenha passado por um filtro que teste a consistências das verdades alegadas. Bom, o problema é que os céticos não acreditam na possibilidade de acessar a verdade, então não faz sentido nem método, nem filtro. Para os céticos, não podemos ter certeza sobre coisa alguma, exceto sobre as observações que fazemos sobre as coisas. 

Coplestone escreve que “enquanto os estóicos e epicúrios viam na ciência ou conhecimento positivo um meio para alcançar a paz de espírito, os céticos buscavam atingir a mesma meta através do repúdio do conhecimento, isto é, através do ceticismo, o oposto da ciência[20].

Ao contrário de buscar certezas, os céticos sustentam que:

 

“A mesma coisa aparece de maneiras diferentes para pessoas diferentes, e não sabemos qual delas está correta: a qualquer afirmação podemos opor a afirmação contrária com argumentos igualmente bons (...). Não podemos estar certos, assim, acerca de nada, e o sábio irá conter seu julgamento (...). Em vez de dizer ‘isto é assim’, devemos dizer ‘isto é assim para mim’ ou ‘isto talvez seja assim’”[21].

 

As recomendações céticas querem dizer que não se pode confiar nem na percepção sensível nem na razão. O discípulo de Pirro de Élis, Tìmon de Fliunte, dirá que “Devemos, em consequência, suspender todo julgamento, não nos permitindo ser pegos a fazer nenhuma afirmação teórica, e assim atingiremos a verdadeira tranquilidade da alma[22].  Muitos que se denominam céticos provavelmente não querem negar a possibilidade de conhecimento, então eles deveriam buscar outra denominação, se por acaso ainda assim aceitarem as premissas céticas, não se pode entender ao certo qual é o ponto de eles raciocinarem e quererem extrair conclusões sobre o que quer que seja, quanto mais acerca de Deus.

Mas no geral, os tópicos que os falsos racionalistas abordam no debate público costumam ser repetidos, eles geralmente falam da idade da terra, da teoria da evolução, design inteligente, fechados em um círculo que gravita em torno de uma ideia fetichizada de ciência. Enquanto isso ocorre, as ideologias que se apoderaram de fundos, departamentos, repartições e empresas sentem-se livres para propagar as suas próprias irracionalidades com total liberdade e sem nenhuma reação por parte daqueles que posam de defensores da ciência e da razão.

As vertentes ateias, então, chegaram a um ponto de esgotamento, do aparente racionalismo chegaram ao irracionalismo e desorientação, eles se tornaram instrumentais a outros movimentos. O ateu racional dificilmente se mantém enquanto tal, ele gosta de se imaginar centrado e rigoroso na aferição científica dos fatos, porém a sua antirreligiosidade na verdade é apenas anticristianismo e aquele vazio, com o qual se diz satisfeito, é mera porta de entrada para que seja preenchido e enfeitado com práticas espirituais diversas, alheias e contrárias à Santa Igreja. Esse ateísmo de que tratamos, quando não é cego e irracional, apresenta-se como falso, um kinder ovo de misticismos, aquelas personalidades que discutem o agnosticismo ou ateísmo, querendo se apresentar como metódicas e retas, podem guardar muitas surpresinhas.

Existem ateus que começam a se situar no limiar das crendices típicas da Nova Era, embora faça algumas críticas a tais vertentes religiosas. Em seu livro “Despertar”, Sam Harris tenta construir uma curiosa visão espiritualista como substitutivo da religião, como se aquele impulso deísta, rousseauniano, que apontamos linhas anteriores, estivesse ressurgindo por entre as formas do pensamento cético da atualidade como um imperativo inconsciente. Qual é a necessidade de um racionalista precisar construir um modo espiritual? Nenhuma. No entanto, Harris delineia diversos exercícios de percepção e abstração vinculados à prática da meditação. Esse conjunto de práticas descritas em seu livro volta-se a produzir bem-estar, sensações marcantes e proveito social; a espiritualidade de Harris é basicamente a administração de emoções de modo a gerar o melhor resultado possível para a sua saúde psíquica.

Tenta-se separar conceitos místicos e espirituais do campo religioso. Ele desassocia espiritualidade de religião, sendo esta dispensável para o ser humano, embora aquela ainda seja de valia. Dotado de cérebro, o ser humano sofre um fluxo de estados mentais, oscilações entre dor e prazer, explicáveis a partir da neurociência, sinapses e bipartição do cérebro humano em hemisférios esquerdo e direito. A espiritualidade de Sam Harris é autoajuda e, traindo a expectativa de cultivar a saúde do cérebro, encontraremos em seu livro uma apologia soft, mas inequívoca, das drogas ilícitas. Sam relata que um dos seus insights veio com o uso de êcstasy quando estava ao lado de um amigo, com esse histórico, ele defende que o “correto” uso das drogas pode ser um caminho interessante para atingir o estado de “iluminação”.

Transcreve-se uma passagem digna de ser acrescida ao presente raciocínio

 

Tenho duas filhas que um dia usarão drogas. Obviamente farei tudo ao meu alcance para garantir que elas as usem com sabedoria, mas uma vida inteiramente sem drogas não é algo previsível e nem, a meu ver, desejável. Espero que um dia elas apreciem uma xícara de chá ou café pela manhã como eu faço. Se tomarem bebidas alcoólicas na vida adulta, o que é provável que aconteça, eu as incentivarei a fazê-lo com segurança. Se decidirem fumar maconha, recomendarei moderação. Do fumo se deve fugir, e farei tudo o que estiver no limite da ação de um pai que se preze para mantê-las longe dele. Nem é preciso dizer que, se eu souber que uma de minhas filhas acabará por adquirir gosto por metanfetamina ou heroína, talvez eu nunca mais consiga dormir. Mas se elas não experimentarem uma substância psicodélica como a psilocibina ou o LSD pelo menos uma vez na vida adulta, pensarei se não terão perdido um dos ritos de passagem mais importantes que um ser humano pode vivenciar.

Isso não quer dizer que todo mundo deva usar substâncias psicodélicas. Como deixarei claro adiante, essas drogas trazem certos perigos. Sem dúvida algumas pessoas não podem se arriscar a um puxão mínimo na âncora da sanidade mental. Já faz muitos anos que usei substâncias psicodélicas, e minha abstinência nasceu de um respeito saudável pelos riscos que elas trazem. Contudo, aos vinte e poucos anos houve um período em que considerei a psilocibina e o LSD ferramentas indispensáveis, e passei algumas das horas mais importantes da minha vida sob a influência dessas substâncias. Sem elas eu talvez nunca descobrisse que existe na mente uma paisagem interior que vale a pena explorar.

Não há como deixar de lado aqui o papel da sorte. Se você tiver sorte, e se usar a droga certa, saberá o que é ser iluminado (ou chegará suficientemente perto disso para se convencer de que a iluminação é possível). Se tiver azar, saberá o que é ser insano clinicamente[23].

 

Ao que parece, seu uso de drogas deixou marcas profundas, enveredando pela teoria das portas da percepção, mostrando-se um sequelado no sentido técnico. As drogas deixam sequelas, um ateu que possui o cérebro como bem mais valioso não tem razão alguma para degradá-lo ou sequer colocá-lo em risco, se considerar que, havendo possibilidade de bom uso das drogas, uma má viagem possa comprometê-lo de maneira irreversível...

Harris também flertou com os orientalismos, tendo gastado uma considerável quantidade de horas em meditações e retiros espirituais para apreender algumas noções de espiritualidade, tomando como referência os estados psíquicos, orientado por mestres budistas. Rotinas de meditação de 12 a 18 horas, procurando vencer o pensamento e superar aquilo que ele chama de self[24].

Nem todo pensador é inteligente, pois, como diria o ditado, de pensar morreu um burro. Filosofia não é aprender a pensar, mas articular as estruturas lógicas de maneira que sejam consoantes à realidade que o filósofo apreende com os sentidos. Embora o pensamento, por si só, não seja sinônimo de inteligência, o pensamento é o playground da racionalidade. Por que raios um racionalista iria querer buscar nas religiões orientais, que possuem fobia da atividade pensante, um caminho para a iluminação? Elas deveriam ser mais desinteressantes do que as próprias religiões abrâamicas, para alguém que se julga racional.

Com efeito, esse tipo curioso de ateísmo sustenta que o eu é uma ilusão, por todos, citemos o próprio livro de Harris: “Muito antes de atingir esse tipo de estabilidade na meditação, porém, podemos descobrir que o sentido de self — o sentimento de que existe um pensador por trás dos nossos pensamentos, um experimentador em meio ao fluxo de experiências — é uma ilusão. O sentimento que chamamos de “eu” é, ele próprio, produto do pensamento. Possuir um ego é como nos sentimos quando pensamos sem saber que estamos pensando[25].

Mais adiante, ele afirmará: O que você está chamando de ‘eu’ é um sentimento que surge em meio aos conteúdos da consciência. A consciência é anterior a esse sentimento, uma mera testemunha dele e, portanto, em princípio, livre dele[26]. (...) “o objetivo mais profundo da espiritualidade é se libertar da ilusão do self — e buscar essa liberdade, como se ela fosse um estado futuro a ser alcançado por meio de esforço, é reiterar os grilhões do nosso aparente cativeiro a cada instante[27].

Os racionalistas em sentido estrito deveriam desprezar todas as crenças religiosas, uma vez que todas teriam por objeto coisas inexistentes, caindo em uma mesma vala de superstição. No entanto, cultivam simpatia por paganismos, ocultismos, orientalismos, satanismos e toda sorte de ismos imagináveis, exceto o cristianismo, esta religião paradigmática contra a qual se voltam todos os impulsos destrutivos e barbarizantes.

 O que justifica essa aparente harmonia do ateu ou agnóstico com crendices de todo tipo, desde que estejam voltadas contra o cristianismo? Seria apenas a alegação de que o cristianismo se trata de uma religião hegemônica e, portanto, de maior ameaça, devendo ser o alvo prioritário? Num primeiro momento, essa parece ser a justificativa.

Porém vamos mais longe. Até que ponto ele estaria disposto a persistir nesse impulso militante para unir forças contra o cristianismo? Será que esses ateus apoiariam governos liderados por comunistas, apenas porque estes são igualmente descrentes e, quando no poder, buscam solapar a Igreja de todos os modos? É aí que a irracionalidade atinge o seu ponto máximo, porque é obrigação de qualquer ser dotado de racionalidade se contrapor a tais esquemas, diante do seu histórico criminal e inconsistência filosófica ou ideológica que lhes é característica. Se o sujeito não é anticomunista, não é racional, mas sim um mero emotivo a ser manipulado e integrado num esforço coletivo que ele próprio desconhece, esforço esse que usa a bandeira anticristã como cenoura de burro para fazer com que o ateu apoie as esquerdas, o que é a regra. Em geral, os anticlericais são esquerdistas, são irracionais e solapam a prosperidade nos campos intelectual, cultural, econômico e mesmo a higidez psicológica.

Dawkins, Hitchens, Harris e Dennett, alinhando-se àquela tradição de autocrítica ocidental, incorrem no mesmo modo de agir, no sentido de que o projeto iluminista é indissociável da vontade de alterar as estruturas de poder e decepar as partículas sociais que constituam obstáculo à ideia de progresso que eles cultivam, completamente ilusória e utópica.

A lição que fica é que o racionalismo ou se perdeu no meio do caminho ou se encontrava viciado desde o início, quando os primeiros autores e grupos de discussões fizeram guerra à crença de seus pais, assim como pretendem os seus rebentos da contemporaneidade.

Para fechar este tópico, conclui-se que: 1) Os ateus militantes, em geral, não são antirreligiosos, são só anticristãos mesmo; 2) Sua pretensão racional conduz à irracionalidade escrachada – eles defendem ou toleram a pseudociência; 3) Os ateus que porventura conseguem uma visão racional dos fenômenos não persistem nesse ponto de equilíbrio, sua superioridade é ilusória; 4) As outras religiões ou práticas religiosas passam a ser abraçadas por esses mesmos sujeitos, principalmente quando a postura de racionalista científico começa a se esgotar – isso é facilmente percebido nos casos de símbolos religiosos, uma cruz em pé é um pedaço de madeira que não expressa nada, mas se você vira a cruz de cabeça para baixo, o ambiente fica impregnado de um ar de cringice satânica patética, aí a cruz inversa vira um “símbolo interessante”; os rituais de missa são encenações sem significado, mas pentagramas e rituais satânicos são charmosos e instigantes, eles possuem lá as suas razões de ser e não são objeto de piadas pelos ateus pseudo-racionalistas como meros objetos inanimados e brutos; uma estátua de Baphomet tem beleza estética e se torna algo bacana de ter em casa, mas imagens de santos são ridículas e aí até mesmo a questão estética é esquecida; em suma, a cruz pendurada no pescoço é um objeto qualquer, mas a correntinha com pentagrama tem significados profundíssimos, acerca dos quais o pseudo-racional pode palestrar com seriedade e fartamente, como se a cruz mesma também não tivesse o seu significado.

Quando são coisas profanas, a capacidade de interpretação simbólica funciona; em se tratando de símbolos sagrados, os neurônios pifam e aqueles objetos passam a ser apenas pedaços de madeira ou de metal, sem sentido, sem transcendência, sem referência histórica ou literária. Ou seja, esse duplo padrão do pseudoateu é uma verdadeira palhaçada diante da qual só podemos rir. 

Como eles são relativistas, suas certezas são falsas e, no que concerne às crenças, o fetiche do racionalismo cientificista e lógico cai por terra e dá lugar a outra constante, a de que o ateísmo é mera etapa intermediária entre crenças, por isso afirmo em letras garrafais o seguinte mantra: primeiro ateu racionalista, depois gnóstico demonólatra. Ou então simplesmente: primeiro ateu, depois gnóstico. No geral, nota-se esse padrão do ateu pseudo-racionalista que, se num primeiro momento adota a posição negadora da metafísica religiosa, posteriormente se converte em simpático a vertentes metafísicas espirituais diversas da cristã, caindo por terra a fantasia de caça fantasmas que anda pelo mundo desfazendo ilusões e totens representativos de delírios.



[1] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: Ensaio de uma Crítica do Cristianismo. Tradução André Díspore Cancian. Legatus editora, 2014. P. 97

[2]Lutero, pai da modernidade, visto por Nietzsche - Instituto Humanitas Unisinos, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/2286-marcio-gimenes-de-paula-1

[3] OLIVEIRA, Plínio Corrêa de. Revolução e Contra-Revolução. São Paulo: Artpress, 1998. P. 6 – versão digital. “E a obra política da Revolução Francesa não foi senão a transposição, para o âmbito do Estado, da ‘reforma’ que as seitas protestantes mais radicais adotaram em matéria de organização eclesiástica: - Revolta contra o Rei, simétrica à revolta contra o Papa; - Revolta da plebe contra os nobres, simétrica à revolta da ‘plebe’ eclesiástica, isto é, dos fiéis, contra a ‘aristocracia’ da Igreja, isto é, o Clero; - Afirmação da soberania popular, simétrica ao governo de certas seitas, em medida maior ou menor, pelos fiéis”. (https://www.pliniocorreadeoliveira.info/rcr.pdf)

[4] MORNET, Daniel. Os Intelectuais da Revolução Francesa. 1. ed. Editora Caravelas. P. 34

[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emíliio ou Da Educação. Tradução de Sérgio Millet. 3. Ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995. P. 363. “Sirvo a Deus na simplicidade de meu coração. Não procuro saber senão o que importa à minha conduta. Quanto aos dogmas que não influem nem nas ações nem na moral, e com os quais tanta gente se atormenta, não me preocupo absolutamente. Encaro todas as religiões particulares como instituições salutares que prescrevem em cada país uma maneira uniforme de honrar Deus através de um culto público, e que podem todas ter suas razões no clima, no governo, no gênio do povo, ou em qualquer outra causa local que torna uma preferível a outra, segundo os tempos e os lugares. Acredito todas serem boas quando se serve a Deus convenientemente. O culto essencial é o do coração. Deus não rejeita a homenagem quando é sincera, qualquer que seja a forma em que é oferecida. Chamado na que professo a serviço da Igreja, cumpro com toda exatidão todos os deveres que me são prescritos e minha consciência me censuraria falhar em qualquer ponto”.

[6] ROUSSEAU, Jean-Jacques.  O Contrato Social ou Princípios do Direito Político. Editora Escala. 2ª ed. Tradução: Ciro Mioranza. P.181

[7] DIDEROT, Denis.  50 frases essenciais. Editora clipper. No mesmo sentido, "A religião impede as pessoas de ver, porque, sob pena de castigo eterno, proíbe-as de olhar. " (...)

[8] LOCKE, John.  Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 2ª ed. Série Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. P. 159

[9] MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. Do Espírito das Leis. Introdução e notas de Gonzague Truc; tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 2ª ed. São Paulo (SP). Abril Cultural, 1979. Livro XIV, capítulos II e IV P. 201/203.

[10] MELO, André. O Iluminismo - Prof. André Melo. https://www.youtube.com/watch?v=NP6_C8EEJBY

[11] MORNET, Daniel. Os Intelectuais da Revolução Francesa. P. 92.

[12] O próprio Dawkins faz referências ao rituais astecas: “Os astecas acreditavam que tinham de sacrificar vítimas humanas para apaziguar o Sol, do contrário ele não apareceria toda manhã. Pelo visto, não tiveram a ideia de experimentar não fazer sacrifícios para ver se o Sol não apareceria mesmo assim. Os sacrifícios astecas têm a fama de serem especialmente horripilantes. Quando essa civilização entrou em declínio, com a chegada dos espanhóis (que tinham seus próprios procedimentos horripilantes), o culto ao Sol atingira um clímax sangrento. Estima-se que entre 20 mil e 80 mil pessoas tenham sido sacrificadas para a reinauguração do grande templo de Tenochtitlán em 1487. Várias oferendas eram feitas para apaziguar o deus, mas o que ele gostava mesmo era de sangue e de corações humanos ainda batendo. Um dos principais objetivos das guerras era conquistar muitos prisioneiros para sacrificá-los, arrancando seu coração do peito. A cerimônia normalmente ocorria em terreno elevado (para estar mais perto do Sol), por exemplo no topo das magníficas pirâmides que fazem a fama dos astecas, maias e incas. Quatro sacerdotes seguravam a vítima em cima do altar, enquanto um quinto empunhava a faca. Ele trabalhava o mais rápido possível para tirar o coração de modo que pudesse erguê-lo ainda batendo para o Sol. Nesse meio-tempo, o corpo ensanguentado e sem coração rolava encosta ou pirâmide abaixo, onde era recolhido pelos anciões e então desmembrado, na maior parte das vezes para ser comido em refeições rituais”. (DAWKINS, Richard. A magia da realidade – como sabemos o que é verdade. 1ª ed. São Paulo (SP). Companhia das Letras, 2012. P. 121)

[13] Idem. P. 234.

[16] The Right Melts Down Over Trans Hershey's Chocolate Ad. https://youtu.be/Bib9TAyJv-Y?si=YDLudmBlNCu980jg

[17] HARRIS, Sam. Carta a uma nação cristã. P. 44.

[18] Idem. P. 45/46.

[19]Do We Live in a Simulated Universe? – Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=tXrASt3EBsk

[20] COPLESTON, Frederick. Uma História da Filosofia. Vol 1: Grécia, Roma e filosofia medieval.  1ª ed. 2021. CEDET. P. 401

[21] Idem.

[22] Idem. P. 402.

[23] HARRIS, Sam. Despertar – um guia para a espiritualidade sem religião. Versão digital. P. 156/157

[24] Idem. P. 18

[25] Idem. P. 87

[26] Idem. P. 88

[27] Idem. P. 107

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