quarta-feira, 2 de julho de 2025

A farsa do "legalismo" dos militares

 



Qual é a conversa que se escuta quando as Forças Armadas se tornam objeto de discussão? A de que os militares são legalistas, eles seguem a letra da lei e da Constituição, não importando a quem aproveite o seu cumprimento. Dito dessa forma, a posição das Forças Armadas, e das polícias em geral, se torna muito razoável, compreensível, debelando críticas que poderiam surgir por conta de alguns de seus atos recentes.

O art. 142, caput, da Constituição assevera que “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Ora, ninguém é contra a legalidade. Respeitar a lei e a Constituição é um consenso formulado para fins de pacificação social e estabilidade, o ideal do Estado de Direito, assim que cunhado, se estabilizou como fator que torna os sujeitos iguais e possibilita segurança jurídica que dá ao cidadão certo grau de previsibilidade das ações do Estado e dos limites admitidos para o seu próprio modo de agir.

Alguém é contra o policial que respeita a lei? Não, ninguém é contra isso. Ocorre que esse juízo é falso. Os militares não são legalistas. Para eles o que a lei prescreve é algo secundário, eles se vinculam a ordens burocráticas das autoridades incumbidas de interpretá-las e não ao teor dos diplomas legais.

O Estado forma uma estrutura que depende muito do trabalho de técnicos, ele precisa do setor de perícias, cálculos, arquivistas, avaliadores, oficiais de cartório, técnicos de informática, dentre outros. São funções auxiliares ao papel de juízes, promotores e defensores, os quais também se espera que sejam técnicos em suas respectivas funções.

O problema consiste em que a atuação técnica nem sempre é o vetor desses agentes com funções relevantes no judiciário.

Nos métodos de seleção para funções subalternas, ainda assim são exigidas noções básicas de direito penal, constitucional, administrativo e processual. O Direito pretende se afirmar enquanto ciência, com termos próprios e exatos, uma estrutura lógica e racional que regula as relações sociais e é capaz de explica-los a partir de critérios próprios e coerentes, o problema consiste quando o encaixe harmônico desses critérios racionais vai perdendo a sintonia.

Enquanto a ciência sistematiza conhecimentos para explicar fenômenos e prevê-los com um grau de relativo acerto, a elaboração de teorias jurídicas não conhece limites, não depende de verificação real, não deve obediência aos fatos.

Assim, os escritores da área chegaram a um acordo e inauguraram uma nova tendência: as construções jurídicas independem dos textos legais, é a interpretação a partir deles que dá origem à norma a ser aplicada. Não há revelação de norma, mas ela é formada a partir do processo interpretativo e uma série de truques semânticos serão construídos para legitimar esse processo de retirada de autoridade da lei para transferi-la aos intérpretes, que irão contrapor aquilo que eles denominam de “letra fria da lei” ao direito vivo.

Ao menos três escolas hermenêuticas podem ser sumariadas: a) escola dogmática; b) escola histórico-evolutiva; c) escola da livre interpretação.

Na escola dogmática, a lei é levada a sério, essa corrente ganha estrutura a partir do período napoleônico com o Código Civil de 1804, instaurando a cultura do código e do texto que não admite formulações do magistrado para além da autoridade que ele de fato detém, sendo a boca da lei. Prevalecem as interpretações de sentido lógico e gramatical.

Para os seguidores da escola histórico-evolutiva, o direito deve ser enquadrado como produto da formação social e não livre criação do legislador, que apenas declara mediante fórmulas fixas a vontade social. Uma vez declarada, a lei adquire vida própria e não se atém à sua fonte formal, por ser produto da vontade social e não do legislador. Esta escola tem o mérito de acrescentar novas modalidades de interpretação, tais como um aspecto sociológico e histórico, com o gravame de que, ao dissociar a lei dos seus elaboradores, passa a admitir a sua livre modificação por meio de uma intepretação progressiva, ou seja, a lei precisa se adaptar à realidade social com o decorrer do tempo. Esta foi uma das primeiras portas abertas para a usurpação pela via interpretativa.

Por fim, a escola da livre criação do direito (ou livre pesquisa) preconiza um processo integrador pela criação de novas regras a fim de suprir lacunas constantes na legislação. As prescrições legais não bastam, são incapazes de prever a complexidade das situações futuras, o que torna necessário que esteja ao alcance do intérprete novas fontes para embasar a sua decisão, a exemplo da atividade que toma como ponto de partida os princípios. O processo de deslocamento da autoridade da lei para a do intérprete atinge o paroxismo, nesta etapa o poder legislativo acaba por se transferir ao Judiciário.  Enfim, o intérprete passa a ter ampla liberdade para determinar qual é o entendimento jurídico adequado ao caso concreto.

Alguns padrões podem ser observados no desdobramento da hermenêutica jurídica, ela passa de um processo de higidez extrema à letra da lei para outra que liquefaz todo produto provindo do legislativo, adicionando justificativas de conveniência para que assim se proceda. Quando o intérprete nota que as lacunas podem ser preenchidas por normas criadas por ele mesmo, as lacunas começam a se multiplicar e mesmo os termos que são exatos passam a se tornar imprecisos, passíveis de reformulação de acordo com princípios tirados da algibeira que, ao final, irão mutilar o próprio texto de lei e substituí-lo por uma construção artificial elaborada pelo operador jurídico, em conformidade à sua vontade. No final das contas, a livre criação é o reino da livre vontade, não é a antessala, mas a própria sala da usurpação.

Só pode ser legalista quem compreende o sentido encerrado nos textos legais, conforme editados pelo legislador investido em suas funções. O legalista pressupõe que da lei emanam comandos projetados pelo legislador com o fim de regular determinadas relações jurídicas. Nesse caso, como em qualquer outra interpretação de verdade, o texto expressa um conteúdo daqueles que legislaram para aqueles incumbidos de dar aplicação à legislação.

Legalistas seriam então aqueles aptos a ler e compreender o sentido do texto, a mens legis e a mens legislatoris, pareando as determinações concretas que o tomam como referência e figuram em mandados judiciais, que serão distribuídos aos seus executores.

Fazendo um pareamento entre o texto legal e o comando jurisdicional, atesta-se a legitimidade deste. Como que um legalista se comporta diante de um comando ilegal? Ele recusa o cumprimento de ordens incompatíveis com o ordenamento. As operações mentais de interpretação da lei possuem estrutura silogística, a premissa maior sendo a lei em abstrato (hipóteses e sanções prescritas), a premissa menor a situação concreta, que encerrará conclusão pela incidência da norma.

A atividade jurisdicional é, via de regra, uma operação de concretização da norma.

Os militares não se voltam ao que a lei determina, nem contrastam o modo de atuar dos agentes públicos com a sua competência constitucional, o que eles fazem é agir de acordo com o que agentes investidos em funções jurisdicionais dizem que a lei ou Constituição exigem, mesmo que tais comandos sejam frontalmente contrários ao teor dos documentos. Não se trata de legalismo, mas sim de judicialismo.

As polícias, em última análise, são braços das autoridades judiciárias. São as decisões, sentenças e acórdãos que irão orientar a atitude dos militares, portanto eles são mesmo é judicialistas, uma vez que terceirizam a cognição do Direito para as demais esferas, tornando-se mesmo incapazes de aferir quando a menção a dispositivos de lei figura apenas como pretexto para a tomada de certas ações e objetivos estratégicos de quem se encontra na qualidade de magistrado. Não é a Constituição o vetor, mas sim a toga, a fonte de lealdade não é o texto de lei ou da Carta Magna, mas sim a interpretação de agentes políticos ocupantes de cargos judiciários.

Os militares não são nem legalistas nem constitucionalistas, mas meros executores de ordens burocráticas recebidas na forma de mandados, com a presunção absoluta de que tais determinações estão compatíveis com a ordem jurídica. Se estivessem preocupados com o efetivo cumprimento da lei, o mais óbvio é que compreenderiam o seu conteúdo, porém mais que isso, estariam dispostos a confrontar a própria autoridade jurisdicional que se utiliza de sua plataforma burocrática para expedir ordens sem base alguma, com evidentes finalidades abusivas e politiqueiras.

Em suma, tirem definitivamente da cabeça a ideia de que os militares são legalistas e se portam unicamente com vistas a aplicar a Constituição, porque isso é falso. Uma ordem judicial que contrarie a Constituição será cumprida da mesma forma. As intervenções políticas serão feitas no sistema jurídico, os textos serão deturpados e falsificados, a falsa hermenêutica dará origem a normas de conveniência, o intérprete confeccionará mandados instando as autoridades policiais a executarem as determinações, e estas carregarão tais ordens até as suas últimas consequências, pouco importando a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico.

Legalistas e constitucionalistas são espécies em extinção, o que há são pessoas integradas à órbita de poder do judiciário, que legitimarão a execução dos comandos políticos dos agentes que coordenam essa estrutura judiciária.

Existem várias cartas na manga para que esses burocratas mantenham sua influência, eles podem se utilizar da sedução, mediante a promessa de ascensão funcional, vantagens estatutárias, ou mesmo ameaça de processos administrativos disciplinares, um dos recursos do grupo político para assegurar a sua autoridade e reduzir o cumprimento de dispositivos legais inconvenientes. O funcionário público pode ser sempre estimulado e forçado a olhar para o outro lado, ou mesmo tornar-se cúmplice a condutas frontalmente contrárias às garantias individuais albergadas na Constituição.

Se a sua compreensão da lei é terceirizada, você não é legalista, porque será incapaz de julgar o próprio intérprete à luz da Constituição e, como consequência, o intérprete é que se transforma em Constituição.

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