Qual é a conversa que
se escuta quando as Forças Armadas se tornam objeto de discussão? A de que os
militares são legalistas, eles seguem a letra da lei e da Constituição, não
importando a quem aproveite o seu cumprimento. Dito dessa forma, a posição das
Forças Armadas, e das polícias em geral, se torna muito razoável,
compreensível, debelando críticas que poderiam surgir por conta de alguns de
seus atos recentes.
O art. 142, caput, da
Constituição assevera que “As Forças Armadas,
constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições
nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na
disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se
à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem”.
Ora, ninguém é contra a
legalidade. Respeitar a lei e a Constituição é um consenso formulado para fins
de pacificação social e estabilidade, o ideal do Estado de Direito, assim que
cunhado, se estabilizou como fator que torna os sujeitos iguais e possibilita
segurança jurídica que dá ao cidadão certo grau de previsibilidade das ações do
Estado e dos limites admitidos para o seu próprio modo de agir.
Alguém é contra o
policial que respeita a lei? Não, ninguém é contra isso. Ocorre que esse juízo
é falso. Os militares não são legalistas. Para eles o que a lei prescreve é
algo secundário, eles se vinculam a ordens burocráticas das autoridades
incumbidas de interpretá-las e não ao teor dos diplomas legais.
O Estado forma uma
estrutura que depende muito do trabalho de técnicos, ele precisa do setor de
perícias, cálculos, arquivistas, avaliadores, oficiais de cartório, técnicos de
informática, dentre outros. São funções auxiliares ao papel de juízes,
promotores e defensores, os quais também se espera que sejam técnicos em suas
respectivas funções.
O problema consiste em
que a atuação técnica nem sempre é o vetor desses agentes com funções
relevantes no judiciário.
Nos métodos de seleção
para funções subalternas, ainda assim são exigidas noções básicas de direito
penal, constitucional, administrativo e processual. O Direito pretende se
afirmar enquanto ciência, com termos próprios e exatos, uma estrutura lógica e
racional que regula as relações sociais e é capaz de explica-los a partir de
critérios próprios e coerentes, o problema consiste quando o encaixe harmônico
desses critérios racionais vai perdendo a sintonia.
Enquanto a ciência
sistematiza conhecimentos para explicar fenômenos e prevê-los com um grau de
relativo acerto, a elaboração de teorias jurídicas não conhece limites, não
depende de verificação real, não deve obediência aos fatos.
Assim, os escritores da
área chegaram a um acordo e inauguraram uma nova tendência: as construções
jurídicas independem dos textos legais, é a interpretação a partir deles que dá
origem à norma a ser aplicada. Não há revelação de norma, mas ela é formada a
partir do processo interpretativo e uma série de truques semânticos serão
construídos para legitimar esse processo de retirada de autoridade da lei para
transferi-la aos intérpretes, que irão contrapor aquilo que eles denominam de “letra
fria da lei” ao direito vivo.
Ao menos três escolas
hermenêuticas podem ser sumariadas: a) escola dogmática; b) escola
histórico-evolutiva; c) escola da livre interpretação.
Na escola dogmática, a lei é levada a sério, essa corrente ganha
estrutura a partir do período napoleônico com o Código Civil de 1804,
instaurando a cultura do código e do texto que não admite formulações do
magistrado para além da autoridade que ele de fato detém, sendo a boca da lei.
Prevalecem as interpretações de sentido lógico e gramatical.
Para os seguidores da escola histórico-evolutiva, o direito
deve ser enquadrado como produto da formação social e não livre criação do
legislador, que apenas declara mediante fórmulas fixas a vontade social. Uma
vez declarada, a lei adquire vida própria e não se atém à sua fonte formal, por
ser produto da vontade social e não do legislador. Esta escola tem o mérito de
acrescentar novas modalidades de interpretação, tais como um aspecto
sociológico e histórico, com o gravame de que, ao dissociar a lei dos seus
elaboradores, passa a admitir a sua livre modificação por meio de uma intepretação
progressiva, ou seja, a lei precisa se adaptar à realidade social com o
decorrer do tempo. Esta foi uma das primeiras portas abertas para a usurpação
pela via interpretativa.
Por fim, a escola da livre criação do direito (ou
livre pesquisa) preconiza um processo integrador pela criação de novas
regras a fim de suprir lacunas constantes na legislação. As prescrições legais
não bastam, são incapazes de prever a complexidade das situações futuras, o que
torna necessário que esteja ao alcance do intérprete novas fontes para embasar
a sua decisão, a exemplo da atividade que toma como ponto de partida os
princípios. O processo de deslocamento da autoridade da lei para a do
intérprete atinge o paroxismo, nesta etapa o poder legislativo acaba por se transferir
ao Judiciário. Enfim, o intérprete passa
a ter ampla liberdade para determinar qual é o entendimento jurídico adequado
ao caso concreto.
Alguns padrões podem
ser observados no desdobramento da hermenêutica jurídica, ela passa de um
processo de higidez extrema à letra da lei para outra que liquefaz todo produto
provindo do legislativo, adicionando justificativas de conveniência para que
assim se proceda. Quando o intérprete nota que as lacunas podem ser preenchidas
por normas criadas por ele mesmo, as lacunas começam a se multiplicar e mesmo
os termos que são exatos passam a se tornar imprecisos, passíveis de
reformulação de acordo com princípios tirados da algibeira que, ao final, irão
mutilar o próprio texto de lei e substituí-lo por uma construção artificial
elaborada pelo operador jurídico, em conformidade à sua vontade. No final das
contas, a livre criação é o reino da livre vontade, não é a antessala, mas a
própria sala da usurpação.
Só pode ser legalista
quem compreende o sentido encerrado nos textos legais, conforme editados pelo
legislador investido em suas funções. O legalista pressupõe que da lei emanam
comandos projetados pelo legislador com o fim de regular determinadas relações
jurídicas. Nesse caso, como em qualquer outra interpretação de verdade, o texto
expressa um conteúdo daqueles que legislaram para aqueles incumbidos de dar
aplicação à legislação.
Legalistas seriam então
aqueles aptos a ler e compreender o sentido do texto, a mens legis e a mens
legislatoris, pareando as determinações concretas que o tomam como
referência e figuram em mandados judiciais, que serão distribuídos aos seus
executores.
Fazendo um pareamento
entre o texto legal e o comando jurisdicional, atesta-se a legitimidade deste. Como
que um legalista se comporta diante de um comando ilegal? Ele recusa o
cumprimento de ordens incompatíveis com o ordenamento. As operações mentais de
interpretação da lei possuem estrutura silogística, a premissa maior sendo a
lei em abstrato (hipóteses e sanções prescritas), a premissa menor a situação
concreta, que encerrará conclusão pela incidência da norma.
A atividade
jurisdicional é, via de regra, uma operação de concretização da norma.
Os militares não se
voltam ao que a lei determina, nem contrastam o modo de atuar dos agentes
públicos com a sua competência constitucional, o que eles fazem é agir de
acordo com o que agentes investidos em funções jurisdicionais dizem que a lei
ou Constituição exigem, mesmo que tais comandos sejam frontalmente contrários
ao teor dos documentos. Não se trata de legalismo, mas sim de judicialismo.
As polícias, em última
análise, são braços das autoridades judiciárias. São as decisões, sentenças e
acórdãos que irão orientar a atitude dos militares, portanto eles são mesmo é
judicialistas, uma vez que terceirizam a cognição do Direito para as demais
esferas, tornando-se mesmo incapazes de aferir quando a menção a dispositivos
de lei figura apenas como pretexto para a tomada de certas ações e objetivos
estratégicos de quem se encontra na qualidade de magistrado. Não é a
Constituição o vetor, mas sim a toga, a fonte de lealdade não é o texto de lei
ou da Carta Magna, mas sim a interpretação de agentes políticos ocupantes de
cargos judiciários.
Os militares não são
nem legalistas nem constitucionalistas, mas meros executores de ordens
burocráticas recebidas na forma de mandados, com a presunção absoluta de que
tais determinações estão compatíveis com a ordem jurídica. Se estivessem
preocupados com o efetivo cumprimento da lei, o mais óbvio é que compreenderiam
o seu conteúdo, porém mais que isso, estariam dispostos a confrontar a própria
autoridade jurisdicional que se utiliza de sua plataforma burocrática para
expedir ordens sem base alguma, com evidentes finalidades abusivas e
politiqueiras.
Em suma, tirem
definitivamente da cabeça a ideia de que os militares são legalistas e se
portam unicamente com vistas a aplicar a Constituição, porque isso é falso. Uma
ordem judicial que contrarie a Constituição será cumprida da mesma forma. As
intervenções políticas serão feitas no sistema jurídico, os textos serão
deturpados e falsificados, a falsa hermenêutica dará origem a normas de
conveniência, o intérprete confeccionará mandados instando as autoridades
policiais a executarem as determinações, e estas carregarão tais ordens até as
suas últimas consequências, pouco importando a sua compatibilidade com o
ordenamento jurídico.
Legalistas e
constitucionalistas são espécies em extinção, o que há são pessoas integradas à
órbita de poder do judiciário, que legitimarão a execução dos comandos
políticos dos agentes que coordenam essa estrutura judiciária.
Existem várias cartas
na manga para que esses burocratas mantenham sua influência, eles podem se
utilizar da sedução, mediante a promessa de ascensão funcional, vantagens
estatutárias, ou mesmo ameaça de processos administrativos disciplinares, um
dos recursos do grupo político para assegurar a sua autoridade e reduzir o
cumprimento de dispositivos legais inconvenientes. O funcionário público pode
ser sempre estimulado e forçado a olhar para o outro lado, ou mesmo tornar-se
cúmplice a condutas frontalmente contrárias às garantias individuais albergadas
na Constituição.
Se a sua compreensão da
lei é terceirizada, você não é legalista, porque será incapaz de julgar o
próprio intérprete à luz da Constituição e, como consequência, o intérprete é
que se transforma em Constituição.
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