quarta-feira, 2 de julho de 2025

O problema dos monarquistas

 





Em 25 de novembro de 1970, o escritor Yukio Mishima encerrava a sua vida com uma ação ousada, tentando dar um golpe de estado cujo desfecho foi o cometimento de seppuku, ao perceber que a sua rebelião não surtira os objetivos pretendidos. Ele desejava restaurar ao imperador japonês todos os poderes que lhe foram castrados com o advento do novo regime do pós-segunda guerra. Discute-se que muito provavelmente o golpe não passou de uma dramatização para que ele pudesse cometer o suicídio de uma maneira considerada honrosa e justificada, considerando a simplicidade do plano e a escassez de recursos para uma tomada efetiva de poder, a falha seria um bom pretexto, tendo o roteiro do golpe se resumido a invadir um quartel do exército com o auxílio de membros da Sociedade do Escudo (Tatenokai), da qual era líder, rendendo o comandante e realizando um discurso aos soldados, exortando-os à restauração do Império com plenos poderes ao monarca, como antes[1].

Súditos querendo entronizar e fortalecer realezas, será que é natural que seja assim? Vamos dar uma olhada em alguns episódios históricos para termos certeza disso.

Dom Afonso Henriques fez a sua história mediante uma série de conquistas militares contra os mouros, em 1147 havia ganhado Santarém com suas forças, ganhando acesso para Lisboa, até então a maior cidade muçulmana do lado ocidental da península Ibérica. Aproveitando-se de uma armada da segunda cruzada que passava pela costa ibérica, reuniu forças e tomou aquela cidade, recompensando os cruzados com as riquezas do saque. Consolidado o norte, voltou-se para o sul, atravessando o rio Tejo e avançando com ordens religiosas guerreiras, movimento este que será continuado com os sucessivos reis portugueses até o pleno encerramento da fase de reconquista da península ibérica. Com custo e sangue estabeleceu-se a dinastia e o mesmo se passará quando Portugal, de reino, converter-se em Império[2].

Com a erosão do império romano ocidental, as massas territoriais europeias passaram por diversas ocupações bárbaras, dentre os quais vale a pena destacar o exemplo dos Francos. Possivelmente originados da Ásia central, passaram para a região báltica e constituíam não um povo único, mas uma liga que aglomerava várias tribos bárbaras, instalando-se posteriormente no nordeste francês e em porções dos países baixos. Sob a liderança de Clóvis, consolidou-se a dinastia merovíngia, que ganhou papel de destaque na liga dos francos.

Naquela época já estava em curso o processo de cristianização dos bárbaros, marcado por episódios célebres como o batismo do próprio Clóvis em 496, pelas mãos de São Remígio, fazendo da fé católica o espírito de seu reino, ao ponto de muitos historiadores considerarem a França como filha primogênita da Igreja, embora outros mencionem os suevos, estabelecidos no noroeste da Península Ibérica, como precursores da conversão bárbara ao cristianismo.

Certo é, porém, que sendo a semente do império de Carlos Magno, os Francos ocupam papel de destaque na história. Conta-se que, ao ouvir a narrativa da Paixão de Cristo, Clóvis teria empunhado uma clava ou martelo, batendo-a no chão, dizendo: “é uma pena que eu não estivesse lá com meus homens para defender Cristo”. Com o primado da força ordenadora, Clóvis unificou os francos e lhes conferiu uma forma estável, estruturada, superando a mentalidade tribal para imprimir uma forma nacional. Com o tempo, a dinastia tende a relaxar o seu ímpeto, passando a delegar funções para os vassalos, o que acarreta a perda da vontade e capacidade de o monarca se impor. É assim que Pepino, o breve, investido da função de major domus, acumula funções no reino ao ponto de depor o último rei da dinastia merovíngia, inaugurando a carolíngia.

Em Luís XIV encontraremos, no momento de maior enrijecimento do poder real, o ponto de inflexão da aristocracia, deixando de ser honrada pelas suas funções militares para se transformar numa classe deveras estranha, com manias aburguesadas, efeminadas e fetiches patéticos, com os quais a nobreza não é senão um elenco de participantes de festas seletas da alta sociedade. Nos encontros chiques, cada nobre era encarregado de levar um adereço para servir de vestuário real, uns levavam os sapatos, outros as luvas, casacas, ou ainda a gravata de renda (o célebre cravate blanche), as meias de seda bordadas com fios dourados, o colete de brocado, ou o espadim cerimonial com punho de prata. Alguns tinham a honra de apresentar as jarreteiras de veludo, presas com pequenas fivelas de ouro; outros se ocupavam da peruca empoadíssima, peça fundamental da imagem régia. Havia aqueles cuja tarefa era tão específica quanto carregar o lenço perfumado do monarca, ou ajustar com precisão o rendilhado das mangas sob os punhos. Em suma, uma verdadeira palhaçada.

Luís XVI também seguia essa tendência antes de ser destronado e morto, assim podemos perceber como os rebentos monárquicos tornam-se fracos e acomodados antes de a realidade cair de maneira brutal em suas cabeças. Este é um dado a ser considerado, o que se iniciou com o mérito gradativamente perde força porque os novos monarcas pensam que as suas posições decorrem de um direito divino e natural.

O poder é algo que precisa ser constantemente reafirmado, não existe direito natural de governar vinculado a uma casa real específica, isso vale quando uma dinastia sobrepuja outra, mas vale também para quando uma forma de governo se consolida após derrubar as formas monárquicas.

O despreparo e a indecisão de Luís XVI são bem conhecidos, a França teve o azar de, em um momento de grandes provações, não ter um monarca com instinto político capaz de ações firmes, conta-se que durante a fuga em direção à Bélgica, Luís XVI teria parado na estrada para experimentar um queijinho gostoso que ele lembrava que havia naquela região, momento em que foi reconhecido, preso e conduzido de volta para os algozes revolucionários que o decapitariam. Não obstante, Luís XVI provou que uma vida de frouxidão prazenteira pode ser compensada com uma morte altiva e digna, quando conseguiu entender algo sobre a seriedade e necessidade das decisões, era tarde demais.

Em formas degeneradas, despojadas do espírito aristocrático, a instituição monárquica é conduzida à ruína, porque a força está divorciada do espírito, esperando o momento de ruptura que concretizará o verso de Camões segundo o qual fraco rei faz fraca forte gente.

Nos sistemas aburguesados teremos arremedos de glória, lapsos de grandeza, como na era napoleônica, mas se tratava de um império que prosseguia no ímpeto revolucionário mediante a absorção de elementos ainda conservadores, nobres e racionais da sociedade francesa – dos mais ferrenhos opositores à Revolução Francesa o regime napoleônico conseguiu formar um destacamento da Vendéia para servir em suas guerras, ou seja, aqueles mesmos católicos que pegaram em armas e humilharam os revolucionários em diversas oportunidades, agora serviam à revolução sem nem se darem conta disso.

As pessoas se esquecem de que a monarquia surge a partir de uma estrutura real de poder e que, mesmo parecendo resultar no comando de um só, o componente aristocrático deve estar presente. Decompondo a palavra para melhor analisar os termos, 'aristocracia' pressupõe a junção de aristós (os melhores) com krátos (poder). Se, por um lado, não basta que uma classe seja qualificada — sendo necessário que também partilhe do poder —, por outro, não é suficiente que ela apenas governe: é preciso que se paute por um farol de virtudes.

Os círculos monárquicos brasileiros não são a aristocracia, pois o poder não está lá. São eventos de gala, momentos de descontração nos quais os presentes expressam um saudosismo de épocas passadas, sem projetos reais para restaurar as bases do poder real, sem ambições ou preparações para uma luta geracional, inflexível e contínua para a instituição de uma monarquia de fato.

A origem das monarquias é a força militar, mais que isso, é a realização de grandes feitos, um conjunto de ações capazes de reafirmar o primado da liderança e da convicção inabalável de que um dado sujeito é o homem certo a ser seguido, trata-se da sensação hegemônica de que um dado homem é indispensável, tanto é assim que essa qualidade é repassada aos seus descendentes, como se dotados fossem dos mesmos atributos e glória.

O sangue azul, por si só, mas não serve de elemento instaurador ou mantenedor de instituições monárquicas, aliás, caso se torne a única coisa existente numa casa real, esse fator se transforma num fetiche esnobe. Os monarcas e a aristocracia em geral somente possuem o sangue em alta conta porque antes estiveram dispostos a sangrar nas guerras. Eliminadas as ameaças, resguardadas as fronteiras, foi então possível a atividade econômica e sacerdotal essencial à civilização e, estabelecida a ordem, todo o resto se tornou possível. A força, uma vez estável, transforma-se em tradição. A tradição, por sua vez, facilita a permanência da monarquia constituída. Com o tempo, porém, o princípio aristocrático da monarquia se corrói e os descendentes já não possuem o mesmo ímpeto dos fundadores da realeza — ou seja, encontram-se em condições de perder a capacidade de governar.

Nos tempos atuais, as referências ao uso da força costumam ser alvo de imprecações, como se ela, em si mesma, fosse um mal — mesmo em contextos defensivos. Contudo, como vimos, os primeiros soberanos dela precisaram lançar mão: expulsaram os infiéis, no caso de Afonso Henriques e seus sucessores, e consolidaram nações em uma Europa fragmentada, como ocorreu com Clóvis. Isso nos permite afirmar que a ausência de uma força ordenadora gera um vácuo prontamente ocupado por forças caotizantes (ou caóticas). Desse modo, a nobreza militar revela-se fundamental e, na verdade, a ausência de uma força ancorada em bases aristocráticas é o que possibilita o surgimento de um ideal de força corrompida, bestializada, desconectada de vetores espirituais relevantes,  contrária à boa ordem. Esse tipo de força corrompida se apega a uma ciência falsa, originando estruturas ideológicas que nos últimos séculos encontraram raízes na brutalidade racial ou econômica.

Por exemplo, nenhum dos suplícios que o Czar pudesse aplicar contra os militantes socialistas de sua época se equipara às atrocidades do gulag soviético, nem o sistema de inteligência da Okrana chega aos pés da mendacidade da Cheka ou KGB. Isso não significa que o regime czarista não tenha sido capaz de brutalidades, mas estas em nada se comparavam com os níveis atingidos durante o regime socialista consolidado com a revolução bolchevique, de maneira que a falta de ação enérgica dos monarcas é responsável pela ascensão de carrascos que não sofrerão das mesmas hesitações. É um dos eventos nos quais a vergonha de derramar sangue de culpados custará mais caro e alcançará, com um espectro ampliado, a vida de vários inocentes.

Se o Rei precisa ser colocado no trono, como se fosse um boneco, então não é para ser Rei. Nenhum Rei que mereça tal posição é simplesmente colocado no trono, mas sim é ele que se coloca lá mediante um esforço ativo de liderança monárquica, lá permanecerá com destreza e tino para o exercício do poder; por tal razão a tentativa de golpe de Yukio Mishima padecia dessa mesma fragilidade que abordamos no decorrer dessas linhas, o imperador japonês se tornara ele também um fator de passividade, cuja permanência foi tolerada pelos norte-americanos, o monarca havia se eclipsado.

A frouxidão vem com o tempo, passando já para a época da subversão iluminista, e aos séculos que se seguem a ela, até mesmo os reis tornaram-se liberais. Atribui-se a Dom Pedro II a alma republicana e encontraremos elementos que evidenciam isso em seu diário, na anotação referente ao dia 7 de abril de 1890: “Abdicara [sic] como meu Pai se não me achasse ainda capaz de trabalhar para a evolução natural da república.” Em 4 de junho de 1891, revelou: “(…) não duvidaria aceitar a presidência da república, se tivesse certeza de que não me suspeitariam de atraiçoá-la. Só aspiro a servir minha pátria com devoção, palavra que melhor exprime o que sinto do que dedicação”. Assim se manifestava, sem nenhuma espécie de rancor, raiva ou indignação pela República proclamada em 1889.

Cita-se com frequência, acerca da proclamação da República, que “o povo assistiu a tudo bestificado”, enfatizando o caráter passivo e espectador da população, sendo essa frase repetida em tom censurador pelos monarquistas, como se dissessem “como vocês deixaram que uma coisa assim acontecesse?”. Pois bem, se o próprio imperador violentado é capaz de se portar com passividade, resignação fraca ou mesmo simpatia para com a República, por que é que deveriam os outros se sacrificar em prol dele, arriscar a própria vida para um governo monárquico que despreza a monarquia?

Em uma conversa sincera com o Ministro José Antônio Saraiva (1823-1895) o Imperador Dom Pedro II afirmou que não se importaria caso o Brasil se tornasse uma República, que para ambos já será inevitável. Em 1889 Saraiva confirmaria, certa  vez, essa disposição do Imperador, dizendo ao genro de Cotegipe que o Monarca era um homem profundamente honesto: "se se convencesse de que o País queria a República, largaria imediatamente o trono e ir se ia embora com sua Família. Como, de fato, iria fazê-lo, sem um  protesto, sem uma palavra ou sequer um gesto em favor de seus direitos de reinar. Aliás, essa tolerância sempre foi um dos traços marcantes da sua personalidade."

O engenheiro e abolicionista André Rebouças, amigo do Imperador, escreveu em seu diário que durante uma de suas conversas pelas ruas de Petrópolis em 1889 o Imperador se confessou republicano: “Eu sou Republicano... Todos o sabem. Se fosse egoísta, proclamava a República para ter Glórias de Washington...Somente sacrificava o Brasil a minha vaidade... e seria um desgoverno Geral...”

Dom Pedro não gostava de política e, para ser bem franco, ele estava realmente farto daquilo tudo, ao ponto de parecer mesmo que o golpe republicano foi uma deixa perfeita para entregar o governo a outrem, livrando-se do pesado encargo para se direcionar rumo à Europa. Fato é que a política é para animais políticos que querem liderar, ganhar espaço, dispostos a se exporem ao desgaste emocional e riscos inerentes ao embate, com sangue nos olhos e vontade de vencer.

Os monarquistas acham que só alegando a nobreza de sangue e glórias passadas eles possuem o direito de entronizar a família real. Monarquia começa com um grande ato de imposição que todo mundo admira porque fundamenta a nação, são os grandes feitos que dão legitimidade para o monarca governar, não existe direito de governar, se Dom Pedro não enforcou os traidores e consolidou o poder, não merecia governar. Ser derrubado por um golpe sem base popular depõe contra a monarquia e não a favor dela, quer dizer, os insurretos nem precisaram construir uma base revolucionária profunda e enraizada no povo para derrubar a Casa Real, uns soldados bastaram e motivações esdrúxulas foram mais que suficiente.

Difícil drama o dos partidários da coroa, eles precisam ser mais monarquistas do que o Rei que querem entronizar, defendê-lo mais do que a vontade dele próprio de governar, pessoas que estão constantemente buscando válvulas de escape e querendo jogar a toalha, fugindo da arena na qual animais políticos combatem, pois para consolidar um reino isso é um básico: ser um ferrenho e resoluto animal político.

Eles (os Braganças) acham que vão ficar sentados, ou em pé mesmo, palestrando sobre o passado e aludindo a uma herança do sangue, e que essa atividade, por si só, os fará merecedores de voltarem a comandar o País. Ou pior, talvez não queiram mais nada, não tenham plano algum, limitando-se a aceitar a República como fato consumado e impossível de ser revertido, restando apenas formar um círculo que evoque aquele charme de glórias passadas, de uma corte requintada com conexões europeias.

A Casa Real, se a pretensão de retornar ao poder for séria, por acaso tem algum plano? Há alguma rede de inteligência privada para o aspirante a Rei, será que fizeram um diagnóstico do porquê de terem caído, apontando falhas estratégicas que não deveriam ter sido cometidas pelos próprios monarquistas? Quais são os planos para arregimentar militância, artistas, escritores, propaganda e atrativos culturais de todo o gênero? Eles fazem análise de conjuntura e emitem ordens, inseridas em algum planejamento estratégico de médio ou longo prazo? Os membros estão em sintonia e plenamente comprometidos com o plano de restauração monárquica? Qual o ato equivalente ao grande feito militar do passado que poderá aventar na opinião pública o merecimento dos realistas ao poder, se de fato o querem? Um manancial de questões é colocado aguardando respostas acerca de um tópico que para muitos brasileiros não passa de fantasia, considerando o estado atual, talvez de fato o seja.

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