Em 25 de novembro de
1970, o escritor Yukio Mishima encerrava
a sua vida com uma ação ousada, tentando dar um golpe de estado cujo desfecho
foi o cometimento de seppuku, ao perceber que a sua rebelião não surtira os
objetivos pretendidos. Ele desejava restaurar ao imperador japonês todos os
poderes que lhe foram castrados com o advento do novo regime do pós-segunda
guerra. Discute-se que muito provavelmente o golpe não passou de uma
dramatização para que ele pudesse cometer o suicídio de uma maneira considerada
honrosa e justificada, considerando a simplicidade do plano e a escassez de
recursos para uma tomada efetiva de poder, a falha seria um bom pretexto, tendo
o roteiro do golpe se resumido a invadir um quartel do exército com o auxílio
de membros da Sociedade do Escudo (Tatenokai), da qual era líder, rendendo o
comandante e realizando um discurso aos soldados, exortando-os à restauração do
Império com plenos poderes ao monarca, como antes[1].
Súditos querendo
entronizar e fortalecer realezas, será que é natural que seja assim? Vamos dar
uma olhada em alguns episódios históricos para termos certeza disso.
Dom
Afonso Henriques fez a sua história mediante uma série
de conquistas militares contra os mouros, em 1147 havia ganhado Santarém com
suas forças, ganhando acesso para Lisboa, até então a maior cidade muçulmana do
lado ocidental da península Ibérica. Aproveitando-se de uma armada da segunda
cruzada que passava pela costa ibérica, reuniu forças e tomou aquela cidade,
recompensando os cruzados com as riquezas do saque. Consolidado o norte,
voltou-se para o sul, atravessando o rio Tejo e avançando com ordens religiosas
guerreiras, movimento este que será continuado com os sucessivos reis
portugueses até o pleno encerramento da fase de reconquista da península
ibérica. Com custo e sangue estabeleceu-se a dinastia e o mesmo se passará
quando Portugal, de reino, converter-se em Império[2].
Com a erosão do império
romano ocidental, as massas territoriais europeias passaram por diversas
ocupações bárbaras, dentre os quais vale a pena destacar o exemplo dos Francos.
Possivelmente originados da Ásia central, passaram para a região báltica e constituíam
não um povo único, mas uma liga que aglomerava várias tribos bárbaras,
instalando-se posteriormente no nordeste francês e em porções dos países
baixos. Sob a liderança de Clóvis, consolidou-se a dinastia merovíngia, que
ganhou papel de destaque na liga dos francos.
Naquela época já estava
em curso o processo de cristianização dos bárbaros, marcado por episódios
célebres como o batismo do próprio Clóvis em 496, pelas mãos de São Remígio,
fazendo da fé católica o espírito de seu reino, ao ponto de muitos
historiadores considerarem a França como filha primogênita da Igreja, embora outros
mencionem os suevos, estabelecidos no noroeste da Península Ibérica,
como precursores da conversão bárbara ao cristianismo.
Certo é, porém, que
sendo a semente do império de Carlos Magno, os Francos ocupam papel de destaque
na história. Conta-se que, ao ouvir a narrativa da Paixão de Cristo, Clóvis
teria empunhado uma clava ou martelo, batendo-a no chão, dizendo: “é uma pena que eu não estivesse lá com meus
homens para defender Cristo”. Com o primado da força ordenadora, Clóvis
unificou os francos e lhes conferiu uma forma estável, estruturada, superando a
mentalidade tribal para imprimir uma forma nacional. Com o tempo, a dinastia
tende a relaxar o seu ímpeto, passando a delegar funções para os vassalos, o
que acarreta a perda da vontade e capacidade de o monarca se impor. É assim que
Pepino, o breve, investido da função de major domus, acumula funções no reino
ao ponto de depor o último rei da dinastia merovíngia, inaugurando a
carolíngia.
Em Luís XIV
encontraremos, no momento de maior enrijecimento do poder real, o ponto de
inflexão da aristocracia, deixando de ser honrada pelas suas funções militares
para se transformar numa classe deveras estranha, com manias aburguesadas,
efeminadas e fetiches patéticos, com os quais a nobreza não é senão um elenco
de participantes de festas seletas da alta sociedade. Nos encontros chiques,
cada nobre era encarregado de levar um adereço para servir de vestuário real, uns
levavam os sapatos, outros as luvas, casacas, ou ainda a gravata de renda (o
célebre cravate blanche), as meias de seda bordadas com fios dourados, o
colete de brocado, ou o espadim cerimonial com punho de prata. Alguns tinham a
honra de apresentar as jarreteiras de veludo, presas com pequenas fivelas de
ouro; outros se ocupavam da peruca empoadíssima, peça fundamental da imagem
régia. Havia aqueles cuja tarefa era tão específica quanto carregar o lenço
perfumado do monarca, ou ajustar com precisão o rendilhado das mangas sob os
punhos. Em suma, uma verdadeira palhaçada.
Luís XVI também seguia
essa tendência antes de ser destronado e morto, assim podemos perceber como os
rebentos monárquicos tornam-se fracos e acomodados antes de a realidade cair de
maneira brutal em suas cabeças. Este é um dado a ser considerado, o que se
iniciou com o mérito gradativamente perde força porque os novos monarcas pensam
que as suas posições decorrem de um direito divino e natural.
O poder é algo que
precisa ser constantemente reafirmado, não existe direito natural de governar
vinculado a uma casa real específica, isso vale quando uma dinastia sobrepuja
outra, mas vale também para quando uma forma de governo se consolida após
derrubar as formas monárquicas.
O despreparo e a
indecisão de Luís XVI são bem conhecidos, a França teve o azar de, em um
momento de grandes provações, não ter um monarca com instinto político capaz de
ações firmes, conta-se que durante a fuga em direção à Bélgica, Luís XVI teria
parado na estrada para experimentar um queijinho gostoso que ele lembrava que
havia naquela região, momento em que foi reconhecido, preso e conduzido de
volta para os algozes revolucionários que o decapitariam. Não obstante, Luís
XVI provou que uma vida de frouxidão prazenteira pode ser compensada com uma
morte altiva e digna, quando conseguiu entender algo sobre a seriedade e
necessidade das decisões, era tarde demais.
Em formas degeneradas,
despojadas do espírito aristocrático, a instituição monárquica é conduzida à
ruína, porque a força está divorciada do espírito, esperando o momento de
ruptura que concretizará o verso de Camões segundo o qual fraco rei faz fraca
forte gente.
Nos sistemas
aburguesados teremos arremedos de glória, lapsos de grandeza, como na era
napoleônica, mas se tratava de um império que prosseguia no ímpeto
revolucionário mediante a absorção de elementos ainda conservadores, nobres e
racionais da sociedade francesa – dos mais ferrenhos opositores à Revolução
Francesa o regime napoleônico conseguiu formar um destacamento da Vendéia para
servir em suas guerras, ou seja, aqueles mesmos católicos que pegaram em armas
e humilharam os revolucionários em diversas oportunidades, agora serviam à
revolução sem nem se darem conta disso.
As pessoas se esquecem
de que a monarquia surge a partir de uma estrutura real de poder e que, mesmo parecendo
resultar no comando de um só, o componente aristocrático deve estar presente.
Decompondo a palavra para melhor analisar os termos, 'aristocracia' pressupõe a
junção de aristós (os melhores) com krátos (poder). Se, por um
lado, não basta que uma classe seja qualificada — sendo necessário que também
partilhe do poder —, por outro, não é suficiente que ela apenas governe: é
preciso que se paute por um farol de virtudes.
Os círculos monárquicos
brasileiros não são a aristocracia, pois o poder não está lá. São eventos de gala,
momentos de descontração nos quais os presentes expressam um saudosismo de
épocas passadas, sem projetos reais para restaurar as bases do poder real, sem
ambições ou preparações para uma luta geracional, inflexível e contínua para a
instituição de uma monarquia de fato.
A origem das monarquias
é a força militar, mais que isso, é a realização de grandes feitos, um conjunto
de ações capazes de reafirmar o primado da liderança e da convicção inabalável
de que um dado sujeito é o homem certo a ser seguido, trata-se da sensação
hegemônica de que um dado homem é indispensável, tanto é assim que essa
qualidade é repassada aos seus descendentes, como se dotados fossem dos mesmos
atributos e glória.
O sangue azul, por si
só, mas não serve de elemento instaurador ou mantenedor de instituições
monárquicas, aliás, caso se torne a única coisa existente numa casa real, esse
fator se transforma num fetiche esnobe. Os monarcas e a aristocracia em geral
somente possuem o sangue em alta conta porque antes estiveram dispostos a
sangrar nas guerras. Eliminadas as ameaças, resguardadas as fronteiras, foi
então possível a atividade econômica e sacerdotal essencial à civilização e,
estabelecida a ordem, todo o resto se tornou possível. A força, uma vez
estável, transforma-se em tradição. A tradição, por sua vez, facilita a
permanência da monarquia constituída. Com o tempo, porém, o princípio
aristocrático da monarquia se corrói e os descendentes já não possuem o mesmo
ímpeto dos fundadores da realeza — ou seja, encontram-se em condições de perder
a capacidade de governar.
Nos tempos atuais, as
referências ao uso da força costumam ser alvo de imprecações, como se ela, em
si mesma, fosse um mal — mesmo em contextos defensivos. Contudo, como vimos, os
primeiros soberanos dela precisaram lançar mão: expulsaram os infiéis, no caso
de Afonso Henriques e seus sucessores, e consolidaram nações em uma Europa
fragmentada, como ocorreu com Clóvis. Isso nos permite afirmar que a ausência
de uma força ordenadora gera um vácuo prontamente ocupado por forças
caotizantes (ou caóticas). Desse modo, a nobreza militar revela-se fundamental
e, na verdade, a ausência de uma força ancorada em bases aristocráticas é o que
possibilita o surgimento de um ideal de força corrompida, bestializada,
desconectada de vetores espirituais relevantes, contrária à boa ordem. Esse tipo de força
corrompida se apega a uma ciência falsa, originando estruturas ideológicas que
nos últimos séculos encontraram raízes na brutalidade racial ou econômica.
Por exemplo, nenhum dos
suplícios que o Czar pudesse aplicar contra os militantes socialistas de sua
época se equipara às atrocidades do gulag soviético, nem o sistema de
inteligência da Okrana chega aos pés da mendacidade da Cheka ou KGB. Isso não
significa que o regime czarista não tenha sido capaz de brutalidades, mas estas
em nada se comparavam com os níveis atingidos durante o regime socialista
consolidado com a revolução bolchevique, de maneira que a falta de ação
enérgica dos monarcas é responsável pela ascensão de carrascos que não sofrerão
das mesmas hesitações. É um dos eventos nos quais a vergonha de derramar sangue
de culpados custará mais caro e alcançará, com um espectro ampliado, a vida de
vários inocentes.
Se o Rei precisa ser
colocado no trono, como se fosse um boneco, então não é para ser Rei. Nenhum
Rei que mereça tal posição é simplesmente colocado no trono, mas sim é ele que
se coloca lá mediante um esforço ativo de liderança monárquica, lá permanecerá
com destreza e tino para o exercício do poder; por tal razão a tentativa de
golpe de Yukio Mishima padecia dessa mesma fragilidade que abordamos no
decorrer dessas linhas, o imperador japonês se tornara ele também um fator de
passividade, cuja permanência foi tolerada pelos norte-americanos, o monarca
havia se eclipsado.
A frouxidão vem com o
tempo, passando já para a época da subversão iluminista, e aos séculos que se
seguem a ela, até mesmo os reis tornaram-se liberais. Atribui-se a Dom Pedro II
a alma republicana e encontraremos elementos que evidenciam isso em seu diário,
na anotação referente ao dia 7 de abril de 1890: “Abdicara [sic] como meu Pai
se não me achasse ainda capaz de trabalhar para a evolução natural da
república.” Em 4 de junho de 1891, revelou: “(…) não duvidaria aceitar a
presidência da república, se tivesse certeza de que não me suspeitariam de
atraiçoá-la. Só aspiro a servir minha pátria com devoção, palavra que melhor
exprime o que sinto do que dedicação”. Assim se manifestava, sem nenhuma
espécie de rancor, raiva ou indignação pela República proclamada em 1889.
Cita-se com frequência,
acerca da proclamação da República, que “o povo assistiu a tudo bestificado”,
enfatizando o caráter passivo e espectador da população, sendo essa frase
repetida em tom censurador pelos monarquistas, como se dissessem “como vocês
deixaram que uma coisa assim acontecesse?”. Pois bem, se o próprio imperador
violentado é capaz de se portar com passividade, resignação fraca ou mesmo
simpatia para com a República, por que é que deveriam os outros se sacrificar
em prol dele, arriscar a própria vida para um governo monárquico que despreza a
monarquia?
Em uma conversa sincera
com o Ministro José Antônio Saraiva (1823-1895) o Imperador Dom Pedro II
afirmou que não se importaria caso o Brasil se tornasse uma República, que para
ambos já será inevitável. Em 1889 Saraiva confirmaria, certa vez, essa disposição do Imperador, dizendo ao
genro de Cotegipe que o Monarca era um homem profundamente honesto: "se se
convencesse de que o País queria a República, largaria imediatamente o trono e ir
se ia embora com sua Família. Como, de fato, iria fazê-lo, sem um protesto, sem uma palavra ou sequer um gesto
em favor de seus direitos de reinar. Aliás, essa tolerância sempre foi um dos
traços marcantes da sua personalidade."
O engenheiro e abolicionista
André Rebouças, amigo do Imperador, escreveu em seu diário que durante uma de
suas conversas pelas ruas de Petrópolis em 1889 o Imperador se confessou
republicano: “Eu sou Republicano... Todos
o sabem. Se fosse egoísta, proclamava a República para ter Glórias de
Washington...Somente sacrificava o Brasil a minha vaidade... e seria um
desgoverno Geral...”
Dom Pedro não gostava
de política e, para ser bem franco, ele estava realmente farto daquilo tudo, ao
ponto de parecer mesmo que o golpe republicano foi uma deixa perfeita para entregar
o governo a outrem, livrando-se do pesado encargo para se direcionar rumo à
Europa. Fato é que a política é para animais políticos que querem liderar,
ganhar espaço, dispostos a se exporem ao desgaste emocional e riscos inerentes
ao embate, com sangue nos olhos e vontade de vencer.
Os monarquistas acham
que só alegando a nobreza de sangue e glórias passadas eles possuem o direito
de entronizar a família real. Monarquia começa com um grande ato de imposição
que todo mundo admira porque fundamenta a nação, são os grandes feitos que dão
legitimidade para o monarca governar, não existe direito de governar, se Dom
Pedro não enforcou os traidores e consolidou o poder, não merecia governar. Ser
derrubado por um golpe sem base popular depõe contra a monarquia e não a favor
dela, quer dizer, os insurretos nem precisaram construir uma base
revolucionária profunda e enraizada no povo para derrubar a Casa Real, uns
soldados bastaram e motivações esdrúxulas foram mais que suficiente.
Difícil drama o dos partidários
da coroa, eles precisam ser mais monarquistas do que o Rei que querem
entronizar, defendê-lo mais do que a vontade dele próprio de governar, pessoas
que estão constantemente buscando válvulas de escape e querendo jogar a toalha,
fugindo da arena na qual animais políticos combatem, pois para consolidar um
reino isso é um básico: ser um ferrenho e resoluto animal político.
Eles (os Braganças)
acham que vão ficar sentados, ou em pé mesmo, palestrando sobre o passado e
aludindo a uma herança do sangue, e que essa atividade, por si só, os fará
merecedores de voltarem a comandar o País. Ou pior, talvez não queiram mais
nada, não tenham plano algum, limitando-se a aceitar a República como fato
consumado e impossível de ser revertido, restando apenas formar um círculo que
evoque aquele charme de glórias passadas, de uma corte requintada com conexões
europeias.
A Casa Real, se a
pretensão de retornar ao poder for séria, por acaso tem algum plano? Há alguma
rede de inteligência privada para o aspirante a Rei, será que fizeram um
diagnóstico do porquê de terem caído, apontando falhas estratégicas que não
deveriam ter sido cometidas pelos próprios monarquistas? Quais são os planos para
arregimentar militância, artistas, escritores, propaganda e atrativos culturais
de todo o gênero? Eles fazem análise de conjuntura e emitem ordens, inseridas
em algum planejamento estratégico de médio ou longo prazo? Os membros estão em
sintonia e plenamente comprometidos com o plano de restauração monárquica? Qual
o ato equivalente ao grande feito militar do passado que poderá aventar na
opinião pública o merecimento dos realistas ao poder, se de fato o querem? Um
manancial de questões é colocado aguardando respostas acerca de um tópico que
para muitos brasileiros não passa de fantasia, considerando o estado atual,
talvez de fato o seja.
[1]
https://coisasdojapao.com/2020/05/yukio-mishima-o-autor-japones-que-cometeu-seppuku-suicidio-ritualistico/
[2] História de Portugal. Rui Ramos et al.
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